Macaco no cipó ou cipó no macaco?
10 de janeiro de 1974 foi o dia do meu embarque no ônibus que me levaria até a cidade de Humaitá, município do estado do Amazonas, distante, cerca de 200 quilômetros de Porto Velho, capital do, na época, Território Federal de Rondônia. Estava indo servir a Pátria Amada no dizer do sargento recrutador do Quartel do 5º BEC que fica bem ali, no início da Avenida Norte Sul, rebatizada de Avenida Rogério Weber.
Às 08:00 da manhã embarcamos. Éramos uns oitenta recrutas embarcados em Porto Velho e desembarcados no Humaitá no mesmo dia, mais ou menos ao meio-dia. A viagem foi uma festa. O interessante é que a grande maioria dos conscritos se conhecera no dia do embarque. Hoje eu imagino que a expectativa do desconhecido, o espírito de aventura imanente dos jovens deve ter feito brotar a camaradagem alegre de quem se sente “Dono do Mundo”. É... Éramos jovens, alegres, desprendidos, e tínhamos o peito aberto para enfrentar o mundo com uma certa irresponsabilidade até...
Os comentários no interior do ônibus eram os mais variados, os tipos então, cada um mais diferente que o outro, a começar por mim, com os meus óculos de dois graus e meio de miopia. Até hoje não entendi a razão de terem me aprovado nos testes de aptidão. Tinha um cara com o braço quebrado, logo apelidado de “Braço de Viola”, um outro cara tinha a pálpebra esquerda baixa, como se estivesse piscando permanentemente, também logo apelidado de “Farol Baixo” e “Mira Certeira”, um terceiro ao tirar o tênis deixou à mostra o pé sem cavidade, recebeu o epíteto de “Pé-de-Pato”. O grupo era heterogêneo em todos os sentidos.
Depois dos primeiros dias de treinamento, tipo “ordem unida”, deita, rola, levanta, corre, volta, se arrasta no chão, exercícios físicos e tudo o que a imaginação fértil de um Sargento sádico pudesse imaginar, tais como acordar de madrugada ao som de granadas explodindo, ardor de gás lacrimogêneo e corredor polonês de calças molhadas batendo nas costas dos recrutas atordoados que corriam sem saber o que estava acontecendo, finalmente deram-nos a paz do cotidiano de qualquer quartel, serviços leves, exercícios físicos, comer e dormir. Acontece que nos meses que se seguiram, num determinado dia a corveta, espécie de barco utilizado pelo exército, deixou de vir de Manaus trazendo os mantimentos para alimentar os bravos servidores da pátria. Informaram que a corveta estava com o motor quebrado e que demoraria uns quarenta dias para normalizar o transporte, demorou quase sessenta dias, o rancho (comida) armazenado no almoxarifado foi acabando, acabando, restou somente carne enlatada e macarrão, era o que o “mão-pelada” (cozinheiro) servia no almoço e na janta.
Depois de algumas semanas a soldadesca não agüentava mais comer carne enlatada misturada com macarrão. Em razão dos pedaços de conserva (carne enlatada) ficarem grudados nos fios de macarrão, logo, logo, a gozação começou... “O que tem para o almoço?” Um soldado perguntava e a resposta era imediata... “Macaco do cipó”. “E na janta, o que é que tem?” Entre risos, alguém respondia... “Cipó no macaco”.
Os dias seguiam rotineiramente, alvorada, serviços leves, exercícios físicos e no almoço e janta, carne enlatada e macarrão. Tinha soldado que quando sentia o cheiro da conserva fritando, regurgitava o café da manhã, baixava na enfermaria, verde que nem jiló. Um dia, um soldado nativo do Humaitá, com o nome de guerra de ‘Trindade’, reuniu um grupo, eu entre eles, e informou que no outro dia nós iríamos comer carne. Diante da certeza com que nos deu a informação, o interrogamos para saber se ele tinha conhecimento de alguma novidade que nós não sabíamos, afinal, um membro do grupo era ordenança do Comandante e pela cara de espanto do sujeito era óbvio que ele estava tão nu de informação quanto nós. O soldado ‘Trindade’ deu um sorriso e esclareceu...
-Lembram dos bois alongados que vivem aí pelos campos por detrás do rancho e do paiol, e que o Tenente informou que nós não podíamos abater porque o gado é de propriedade do governo, pois bem, hoje estou de serviço no paiol e vou abater o primeiro boi que passar pelo posto.
Tentamos dissuadir o ‘Trindade’, sem muito êxito. O cara estava determinado a comer um bife mal passado. Já estava tudo combinado com o “mão-pelada” da cozinha.
As horas passaram e sem acreditar muito na promessa do “Trindade”, forçamos garganta abaixo o “macaco-no-cipó” servido no jantar. Fomos para alojamento e depois das gozações costumeiras, as conversas foram diminuindo, diminuindo, até que daí em instantes ouviam-se os primeiros roncos dos mais cansados. De repente o silêncio da madrugada foi rompido pela sirene de alarme de ataque. De acordo com os treinamentos a sirene somente era acionada em caso um ataque armado às dependências do quartel. Um tanto atordoados corremos em trajes menores, ou seja, de cuecas, para a intendência em busca dos fuzis, metralhadoras e o que mais servisse para a defesa da guarnição. No caminho para a intendência ouvíamos as rajadas do fuzil FAL na direção do paiol. Enquanto recebíamos as instruções de defesa, chegou um cabo informando que o alarme era falso. Era somente um soldado, que desajeitado, havia disparado contra um boi, lá para os lados do paiol.
Resumindo: O ‘Trindade’ matou o boi, pegou quinze dias de cadeia, a soldadesca comeu carne até se fartar e em agradecimento pela ousadia e iniciativa do ‘Trindade’, lavou com sabão-em-pó a roupa e os uniformes do preso. O matador também teve direito a goiabada com queijo, doce-de-leite, leite condensado, maços de cigarro, e, com a agradecida colaboração dos carcereiros ainda teve direito a beber rum Montilla com coca-cola, tendo como tira-gosto um lata de camarão seco. Nunca vi preso mais paparicado.
Ê meu caro ‘Trindade’, se um dia você ler essa crônica, saiba que até hoje lhe sou extremamente agradecido pelo bife mais SABOROSO que comi em toda a minha vida.