Paulinho Morreu
Paulinho morreu.
Não. Eu não sofri por ele. Poupada pela tenra idade que me livrou da compreensão da inexorabilidade do fato, isolada em casa de amigos, fiquei alheia também ao desespero de meus pais e irmãos mais velhos ante a dor da perda.
Tinha acesso às notícias de forma velada, sempre em tom muito baixo, respeitoso. O sentimento, natural, era de perplexidade. O choque provocado pela quebra do paradigma: ninguém morre aos quatorze anos de idade.
Paulinho era um menino lindo. Não lembro dele vivo, gestos, sorrisos. Não lembro de sua voz. Sei dele por fotografias amareladas guardadas numa caixa de papelão no velho apartamento da família. Sei dele pelos depoimentos, até hoje, emocionados, de minha mãe. Ela estava grávida quando o acidente aconteceu. Um passeio da escola, nas cachoeiras de Itiquira. Eu já visitei todas as cachoeiras da região, mas Itiquira ainda é um tabu.
Ele caiu na água e não voltou. Alguns colegas tentaram ajudá-lo mas o professor impediu, temendo perder outras crianças. Os bombeiros demoraram a achar o corpo. Foi meu pai quem o encontrou, o pé preso entre as pedras do fundo. Lindo! os cabelos longos e loiros, como se esvoaçassem movidos pela água em turbilhão. Suas feições não denotavam pânico. Os legistas disseram que ele bateu a cabeça na pedra. Estava inconsciente quando a morte o encontrou.
Lembro vagamente da sensação de luto ao voltar para casa. A vida dos que ficam precisa reencontrar seu eixo e minha família não era diferente. O sofrimento ia cedendo espaço ao cotidiano e aos poucos, fui tomando conhecimento do fato de que ele não mais voltaria. Lembro de uma páscoa, algum tempo depois, em que eu lamentei que Paulinho não fosse Jesus, para como Ele, ressuscitar ao terceiro dia e poder sentar-se conosco ao lado do papai.
Paulinho era um menino inteligente. Não lembro de nenhuma frase sua, de nada que possa comprovar isso. Apenas alguns cadernos e trabalhos escolares cuidadosamente preservados em gavetas. Lembro que ele implicava comigo, pois, por ser a única menina da casa, havia reduzido parte de suas regalias de primogênito. Lembro que, um dia, ao voltarmos da missa, brigávamos tanto que a mamãe nos separou, cada um de um lado da enorme família. Uma tempestade tomava forma e um raio caiu do lado em que ele estava. Na minha visão de criança, perigosamente perto. Esqueci todo o rancor da briga de instantes atrás e corri na direção dele para certificar-me de que estava bem.
Quando papai morreu, foi junto de Paulinho que o enterramos. O corpo exumado, seus restos acondicionados numa caixinha para que o caixão de papai coubesse na campa. O que restava dele, além de alguns ossos farelentos eram os cabelos, enrodilhados nas grossas raízes do cipreste que invadia solene aquele recanto de paz.
Paulinho morreu e não foi-me dado chorar por ele.
Mas eu sempre quis que Paulinho tivesse vivido, crescido e implicado comigo por todos esses anos.