A Carruagem de fogo
Resolvi voltar a escrever. Não sei o porquê. Também não sei por que parei, se ainda tenho tantas idéias na cachola. Talvez também sejam as idéias, pois existem idéias que não se escrevem, apenas as vive. Estranho isso, viver idéias. No século dezenove se morria por elas. Hoje, se vive por elas.
No meu caso, voltei a escrever por que lembrei de minha mãe. Assim como Carlos, se eu fosse o Rei do Mundo, criaria uma Lei onde fosse proibida a morte das mães. Mãe é coisa eterna. Talvez o paraíso estivesse com o efetivo pequeno de mães...
Talvez voltei a escrever por ter a mente abarrotada de idéias, precisando de um escape. Já disse, certa vez, que me expresso melhor pelas letras. Pelas letras me escondo mais, me distancio mais; porém fico mais aceitável a mim mesmo, a Deus e aos outros. As letras me transportam para o mundo ideal.
Talvez voltei a escrever para minha salvação. Ou satisfação. Não escrevo para os outros, mas para mim mesmo. Então por que você fica enviando suas letras, já que elas são somente para você? Talvez seja tolice, mas as letras que voltam fazem mais sentido do que as que vão. Qual um bumerangue, envio letras aos amigos para recebê-las de novo, novo mesmo, receber novidades, receber letras alheias, letras d’outros, letras que saíram de corações por que incitadas pelas minhas letras. Eis a justificativa de minha tolice virtual.
Minha mãe sempre escreveu cartas. Quando estava distante ela me escrevia cartas de até dez páginas. Cartas escritas à mão. Nas curvas de suas letras sentia sua presença, sua mão. Podia ver a caneta entrelaçada em seus dedos desenhando meu nome, o de meu pai e o de meu irmão. Por muito tempo, aquelas cartas aliviavam a dor de meu espírito causada pela saudade. Até hoje tenho essas cartas. Minha mãe vive intensamente naquelas letras. Talvez voltei a escrever por que as letras incansáveis de minha mãe foram transportadas para meu espírito. Como herança.
Isso me lembra Elias e Eliseu. Elias foi um grande profeta Hebreu e Eliseu seu mais fiel discípulo. Elias profetizava, ressuscitava mortos, curava doentes, falava com o Deus Hebreu. Elias era um grande amigo do Deus de Israel. Eliseu tornara-se um grande discípulo do grande profeta de Israel. Havia uma promessa de que Elias não morreria, mas seria arrebatado aos céus de forma maravilhosa. Esse dia era esperado com grande ansiedade por Eliseu, pois este acreditava que herdaria todas virtudes de seu mestre. Eliseu amava Elias, não podia imaginar o desaparecimento de seu mestre sem sentir um vazio extremo. Mas o desejo de ser um grande profeta também era muito forte. Já que Deus resolvera arrebatar o grande profeta, por que não desejar ser o herdeiro de seu espírito? Deus não mata verdadeiros profetas e nem as mães, Ele apenas os recolhe. Eis que o tão prometido e esperado dia chega e Elias é arrebatado à presença de Javé numa carruagem de fogo. Aquele acontecimento fere o espírito de Eliseu para sempre. Eliseu atordoado recebe o espírito de Elias na solidão do deserto. Eliseu já não sabia se desejava o cajado do mestre ou a carruagem de fogo. Imaginou-se navegando sobre a criação numa carruagem de fogo. Eliseu trabalhou tanto quanto seu mestre e jamais saiu de sua mente a carruagem de fogo voadora que tem acesso às delícias do Criador. Eliseu herdou o espírito de Elias. Este acontecimento gerou várias religiões. Várias interpretações dentro de várias religiões. O maior desejo do homem, seja profeta ou não, é voar numa mágica carruagem de fogo que o liberte da terra e o conduza às entranhas divinas. Elias conheceu as entranhas de Deus.
Das entranhas de minha mãe eu surgi. Fui seu maior discípulo. Quando Deus enviou a carruagem de fogo para levá-la às Suas entranhas, recebi seu espírito no deserto de minha existência. Desde então escrevo. Talvez voltei a escrever por desejar a carruagem de fogo.