O amor exige coragem
- Se você não me ama, deixe-me ir...
Como um seqüestro se sentia preso na falta, ou melhor, no fim do amor. Aprendera, no colo de sua mãe, que o amor era eterno. Mas agora estava diante de uma constatação que feria todos os ensinamentos que recebera de sua mãe, o amor havia acabado. Não podia ser possível, pois o amor é perene...
- Se você não me ama, deixe-me ir...
Ironicamente, não conseguia se ver livre das correntes enferrujadas do amor que já fora doce e jovem como os braços ternos de uma bela mulher. Parecia-lhe que os braços, outrora ternos e suaves, tornaram-se ásperos e opressores. Descobrira que o amor e o tempo podem ser inimigos eternos.
Não entendia por que não conseguia ir, já que não havia mais amor. Um amigo dissera-lhe, certa vez, que era o costume. Em nossa natureza múltipla sempre predomina aquilo que nos acomoda e sossega. Às vezes a prisão é costume. Não, não se referia à rotina, pois esta jamais será acomodação. A rotina é sentido. A vida só tem sentido na rotina.
- Se você não me ama mais, então vou embora...
Falava em tom de ameaça, mas não recebia nenhum feedback. Apenas o silêncio. Ele já não sabia se amava a imagem da mulher do passado ou o silêncio mais aterrador que renega a existência com a mais forte indiferença. Mamãe enganara-se, o amor alimenta-se do tempo. O amor pode estar saciado e satisfeito, e recusar o alimento que outrora o fortalecia... Mamãe enganara-se.
Buscava, no fundo de seus olhos, vestígios da mulher jovem que conhecera e que o apresentara ao amor. Mas seus olhos tornaram-se rasos, sem profundidade. Como enxergar seu espírito sem os olhos profundos? O espírito habita as profundidades do ser. É nele que se encontra o verdadeiro amor, mas quando os olhos se tornam rasos, o espírito é sufocado pelo ceticismo tão comum de nossos tempos. Os olhos rasos favorecem as linhas que nos limitam. Os olhos rasos nos prendem sem direito a hábeas corpus. Os olhos rasos já são a sentença da pena capital. Os olhos rasos dificultam o exercício da imaginação e fortalecem o poder da razão. Os olhos rasos preferem o limite da razão a ilimitada potência da imaginação. Aprendera que a razão era amiga do tempo. Aprendera que a imaginação é como um deus brincalhão que não se cansa da vida. Ela abandonara o deus brincalhão pelas grades da certeza.
- Se você não deseja mais a aventura, então deixe-me ir...
- Vá embora. Depois não diga que tive culpa na sua loucura. Não venha dizer-me mais estas bobagens de espírito, deus, rotina, olhos rasos... Vá, vá se embriagar dessa vontade pueril que o homem sente quando se está velho, quando se aproxima sua aniquilação eterna... Vá!
- Na verdade não vou há lugar nenhum. Apenas quero viver...
- Viva como um tolo! E deixe meus olhos em paz...
Sorrira com aquelas palavras. Percebera que com o fim do amor, as pessoas atingiam um pessimismo irreparável.
A última notícia que tive desse sujeito, foi que ele havia vendido sua biblioteca. Ficara apenas com alguns livros. Não por que eram livros importantes para alimento do intelecto, mas eram seus primeiros livros. Livros que tinham várias anotações em suas páginas. Sua amada morrera há dois anos, diziam no velório que jamais fora visto olhos mais rasos que aqueles. Estranharam que o sujeito não aparecera ao enterro, desde sua separação nunca mais fora visto. A não ser por um velho amigo, que na época entregara uma carta dele à mulher. E segundo esse velho amigo, fora uma das poucas vezes que vira alguém sorrir ao ler uma carta. E ouvira a mulher repetir a última frase: ...o amor exige coragem.