Bálano

Cada termo que se livre da pragmática que o envolve; cada palavra que se proteja da maldita tal carga semântica. Em outras palavras, cada um que se proteja da fama, da língua do povo. Veja o significado que está implícito na palavra animal num livro de Graciliano Ramos. Uma personagem de São Bernardo analisa, conceitua e trata o ser humano através do conhecimento adquirido num manual de zootecnia.

Uma poeta (uso este termo para abrir este parêntese: diz-que Cecília Meirelles se sentia diminuída com o adjetivo poetisa), advogada, colega de turma, escandalizou-se com tal brutalidade e expressou, apaixonadamente, sua aversão ao personagem narrador do romance. Não conseguiu identificar nenhum ângulo, por meio do qual, pudesse vislumbrar qualquer resquício de humanismo, similaridade com gente, com o ser humano...

Como estudar o comportamento humano atual através de uma obra como esta, narrada por Paulo Honório, matuto de enxada, que enriqueceu negociando com trapaceiro no sertão nordestino? Que proveito poderia ter tais letras grosseiras em atitudes rudes, violência, assassinato e tudo de ruim que o humano apresenta? É possível acreditar que se possa matar, roubar, enganar, ludibriar, desde que se use luvas de pelica?

Ora, apenas muda-se a roupagem e o cenário porque o texto é o mesmo, e é atual. Aliás, o texto deve passar por um processo que lá na minha terra chama-se ‘enfeitar o bode’. Nos dias atuais, principalmente aqui no Sul, um empresário não precisa mandar assassinar concorrente (a não ser em último caso); é muito mais fácil provocar a falência do mesmo. Como se faz isso? É só descobrir o que nós brasileiros, ricos ou pobres, colocamos debaixo do tapete e chamar à mídia.

Não há necessidade de se esfaquear o rival corneador porque chifre é coisa fina, suruba está na moda e as modernas Germanas têm casca de moças de famílias, celebrizadas, nitidamente ‘comida’ de rico; senhoras casadas, milionárias por saírem nuas em revistas masculinas mostrando úteros, ovários, etc. Que importância tem isso no mundo moderno?

Ultimamente também homens aderiram à nudez artística e exibem suas fimoses sem nenhum pudor. Da parte que me toca, acho que as fabricas de vestuário deveriam lacrar suas portas.

Preciso abrir um parágrafo. Adoro parágrafos. O parágrafo salva a vida dos escritores. Sabia? Já imaginou um ‘divago’ como eu proibido de usá-lo?

Quero dizer do abandona sofrido por Paulo Honório na infância e compará-lo à situação atual. 'Para que reconhecer o direito a vida de um recém-nascido enjeitado, sem eira nem beira, se as praças e as prisões para adolescentes infratores estão abarrotadas de trombadinhas? Melhor cortar o mal pela raiz e jogar o piolho no lixo, no rio, aos cães, enfim, em qualquer lugar em que não sobreviva. Se não, pode gerar grandes problemas no futuro, talvez seja preciso esganá-lo e jogá-lo do alto de edifícios’.

Imagine ter que pagar a subsistência de uma criatura durante 18 anos, uma criatura que te não representa nada, que nem deveria ter sido gerado; nasceu de uma gozada fuleira que bem podia ter sido na boca de um viado aidético, numa dessas cabines de filme pornô, cujo orifício (único acesso entre os recintos) mal cabe um bálano raçudo. A modernidade é incrivelmente prática: se é mamado sem ao menos ver a cara do chupador. Que importa se é branco, preto, velho, novo, casado, solteiro... O importante é se aliviar e, o mais importante: não há risco de pensão nem registros de transmissão de doenças.

A fisiologia não brinca e arrasta homens a pensarem e agirem com a glande. Há exceções, claro. Mas são tão ínfimas que nem adianta colocá-las em explanação.

Daí surge a frase: por que se fazem enjeitados? Os filhos desejados, até que ponto são mais humanizados? Um coelho pode sobreviver dentro da jaula de leões? E a resposta constituiria uma tese de doutorado pela USP.

Mas, voltando à carga semântica que pegam alguns vocábulos, quero pedir respeito à palavra animal principalmente quando nesta está implícito o adjetivo irracional. Explico-me: um amigo enviou-me e-mail com fotos de vários animais selvagens, cada qual cobrindo de carinho e afeto seus respectivos filhotes. No sinal da série de lindos retratos, aparecia uma criança chorosa, desprotegida, abraçada a um ursinho de pelúcia; e no rosto machucado da pequena, visíveis marcas de espancamento; abaixo, os dizeres: algumas crianças gostariam que seus pais fossem animais. Moral da coisa: os animais irracionais não agridem seus filhotes; enquanto os humanos decepcionam a espécie. E isto acontece porque se valoriza o ‘como é dito’ em vez do ‘dito’ em si.

Graciliano Ramos não construiu apenas um nordestino grosseiro através do manual de zootecnia. Através deste, inferindo defeitos que os irracionais nunca tiveram, o grande escritor traçou o comportamento humano. A linguagem brutalizada, nordestinizada, foi apenas um charme tipo: bandeira de renda cearense e Asa Branca hino nacional...