O que é ônibus - parte 1
- Licença.
- Toda...
Quase não ouvi o "toda". Mas o "licença" eu ouvi, e muito bem. Ainda não sabia o quanto esta palavra mudaria o meu caminho para o trabalho.
Estava sentada no banco da frente deste homem que pedira licença. Sentou-se ao lado de uma senhora de meia idade, de cabelos loiros. Ela segurava um recipiente com doces.
- A senhora sempre pega esse ônibus?
- Não, eu pego o Butantã-USP normalmente.
- Eu também! Mas demorou muito pra passar...
- É...
- Você sabe se esse ônibus passa nas Clínicas?
- Acho que sim, mas eu desço antes. Não tenho certeza.
- Ah...
Sim, o ônibus iria até as Clínicas. Eu pego o ônibus todos os dias e, ao longo desse tempo, pude perceber que as conversas no ônibus fluem de pessoa para pessoa. O papo agora já havia começado e não se pode cortar quem não se conhece.
- A senhora faz doces?
Característica primeira da conversa no transporte coletivo: assuntos óbvios. Esse senhor inovou ao atentar para o que a mulher segurava. Normalmente olha-se para a janela e se diz: "Acho que vai esquentar/esfriar/chover".
- Sim.
- Mas a senhora vende?
- Vendo sim.
- A senhora faz brigadeiro?
- Faço.
- Faz bolo?
- Também.
- Até bolo de casamento?
- Até...
Número dois: questionário de respostas breves ou não. As perguntas são feitas por quem começou a conversa e as respostas traduzem o desejo de continuar ou não mantendo o papo. Aqui deixo aberto à conclusões do leitor: a mulher está interessada no que o homem tem a dizer?
- A senhora deveria fazer um curso.
- Hein?
A característica três é facultativa, portanto não me estenderei tanto. Mudança repentina de assunto. Faz total sentido para quem pergunta, todavia deixa quem ouve desnorteado.
- Um curso no SEBRAE, para administrar melhor o seu negócio...
Característica quatro, a conclusão precipitada. Para isso o "amigo-leitor-possível-conversador-secundário-em-transporte-coletivo" possui duas opções. Ou transformar a conversa em briga ("O senhor está insinuando que eu não administro bem?!?") ou ignorar. A sensata senhora decidiu pela segunda opção.
- Curso no SEBRAE? É, talvez...
- É uma boa idéia! A senhora podia fazer aquele Pequenos Negócios Grandes Empresas.
Agora eu tive que largar o livro, pois Graciliano Ramos não conseguiu conter esse comentário nas cercas de São Bernardo. Tenho a obrigação de alertar o leitor. Nem sempre seu interlocutor fará um comentário bizarro, porém é bom estar preparado.
- Esse é meu ponto.
- Vai com Deus! Bom trabalho!
- Pro senhor também.
Eu desci um ponto depois. O senhor já havia iniciado uma nova conversa com um jovem de sardas. Esta talvez durasse até as Clínicas.