Vergonha de ser honesto
Três vezes por semana, dia sim, dia não.Excetuando-se os domingos, garis limpam a rua onde moro.
A maioria aparenta mais de cinquenta anos, alguns bem mais.É raro encontrar algum moço entre eles.
Suas mãos muito calejadas, marcas indeléveis deixadas pelo sol em suas peles, a ausência de barrigas e um certo ar de tristeza e cansaço indicam que já trabalharam muito.Certamente são ex-trabalhadores da dura rotina do campo.Não conseguiram se aposentar.Não puderam provar que no passado já trabalharam.
Ernesto é um deles.Percebe-se em seu semblante uma certa vergonha da situação em que se encontra.Já fora proprietário de terras, empregara muita gente.Era bem atendido pelos gerentes dos bancos.
Agora alí. Sempre trabalhara muito.Sempre fora honesto.Os contratempos do mercado de produtos agrícolas, a bolsa de Chicago, os altos juros.Não ele não sabia explicar.Lembra-se apenas que teve de vender suas propriedades para pagar os bancos.
É hora do almoço. Em uma cidade pequena é possível almoçar na própria casa.Ernesto assiste à tv e vê a entrevista dada por um deputado da região falando da sua bem sucedida trajetória política, da sua origem humilde... Ao fundo, o cenário da entrevista: uma luxuosa mansão numa bem cuidada fazenda.Uma bela criação de Nelores,de raça apurada.
Tempos depois, no mesmo horário na frente da mesma tv, fervem notícias de um escândalo sobre propinas, e acusado de participar dele, nada menos que aquele deputado que ele viu sendo entrevistado.
O deputado prá não ser cassado e perder direitos politicos, renúncia.
Ernesto volta à rotina de varrer ruas. É um serviço mais leve que o da roça.Sente um certo constrangimento.Sempre cabisbaixo, responde ao cumprimentos dos que passam.É assim; nas pequenas cidades todos se cumprimentam, não fazê-lo é um deslize imperdoável.
Ele sabe que na próxima eleição as ruas estarão cobertas de papéis anunciando candidatos que concorrem àquele pleito.Naquele amontoado de papéis uma quantidade relativamente grande com o nome do político citado.Há possibilidade de que referido candidato se eleja.As pesquisas demonstram isso.É Ernesto quem limpará a rua.
Ernesto termina o seu trabalho. Vai prá casa.
Amanhã tudo recomeça. Ele com vergonha da situação em que se encontra.Não rí.Não adianta lhe dizer que trabalhar não é vergonha!
O outro, talvez nem se lembre da situação vexatória a que se submeteu.Sorrí frente às câmeras de televisão. Foi eleito!