Dias Atuais: homenagem a Nelson Rodrigues

Os dias atuais estão cada vez menos cheios de surpresas inesperadas, tamanha a ordem imposta pela nossa burocracia, no trabalho ou em casa mesmo.

Cristina era um exemplo disto. Morena, bonita de rosto, que mostrava ossos bem feitos, modelando a face, olhos e cabelos castanhos e lábios cheios, mas sem excesso, estava lá com seus quarenta anos, embora jurasse trinta e sete. Casada e mãe de dois filhos, educados no padrão da classe média, com tendência para alta.

Desembaraçada, falava muito bem e tinha razoável cultura, não envergonhava nenhuma sala que costumava freqüentar. Que não eram poucas, é bom que fique claro. Nada na sua aparência ou modo de falar demonstrava vulgaridade. O trajar esmerado, sem excessos, e o falar sempre muito interessante e cativante, fazia dela uma mulher cobiçada.

Desempenhava bem o seu papel, como mãe de família e mulher correta e amiga do marido. Nela não se viam defeitos.

Tinha, como qualquer um de nós, suas implicâncias. Era teimosa; o que julgava certo, não havia discussão, um lado não desenvolvido da sua personalidade. Quem disse que somos os donos da verdade? Mas Cristina muitas vezes opinava sobre certo assunto e pronto, caso encerrado. Como esta não é a maneira de agir e pensar, muitas vezes viu-se diante de situações embaraçosas. Esta coisa de “achismo” é como o nome da palavra está dizendo, a pessoa acha que determinado assunto é assim. É assim, ponto final.

Felizmente, ela não abusava deste lado defeituoso, e de defeitos todos nós somos um poço.

- Eu acho a sociedade de hoje muito permissiva.

- Eu também, querida. Mas já foi um horror de proibições, Cristina.

- Isto não justifica o que vemos por aí, inclusive via televisão, que invade nossas casas sem pedir autorização.

- Mas eles estão certos, Cristina. Têm que vender suas idéias, suas mercadorias. Vivem disto.

- É, vivem disto e nos matam de tanta falta de vergonha, por causa disto.

- Está falando de que, qual assunto?

- Novelas, principalmente. Foram muito comportadas, bem conduzidas. Tenho a impressão que as próximas vão ter sexo explícito.

- Será?

- E você duvida, vendo o que vê nas atuais? Não tem mais insinuação, a coisa é feita bem às claras. Mais um pouco e vamos ter filmes pornô sem precisar ir à locadora.

- Não está exagerando muito, Cris?

- Espere que você ainda vai ver muitas cenas interessantes nestas novelas.

Cristina era assim. Esta conversa foi enquanto fazia o cabelo, com uma amiga de escola que andava sempre junta. Eram amigas de longa data.

No dia seguinte, havia uma reunião de pais, na escola que a filha estudava.

O assunto era exatamente este. A escola não tinha padrões reacionários, mas também não era liberal. Nem poderia ser, pois se fosse liberal, Marta, a sua filha, não estaria estudando lá. Depois de muita falação, concluíram que as moças não poderiam ir mais de bustier às aulas. É, bustier mesmo. Com uma apertada calça jeans, tênis e mochila, indumentária escolar que impera nos dias atuais. O celular! Quase que não é mencionado, pecado capital. O celular com sua longa lista de contatos.

Ficou decidido dar um não ao bustier. Uma camisa leve, ainda que meio transparente, e a dona sem usar soutien, podia. Isto não ofendia os padrões da escola. E as mocinhas não levariam tantos beliscões nos ônibus, beliscões, mãos que sabiam direitinho onde tocar, quando a coisa era mais simples. Algumas vezes, houve quem sentisse prazer dentro destes ônibus.

Pode parecer muito estranho, uma moça de classe privilegiada andar de ônibus com ar refrigerado, ou metrô. Mas não é. Chato é saltar do carro da mamãe, pega mal, isto é coisa para crianças. Estudar que é bom, quase nada. Agora havia vaga garantida na faculdade, tantas haviam sido criadas, oferecendo os mais diversos tipos de cursos.

Acabada a reunião, Cristina tomou um longo banho, ficou nova como um bebê. Coisas mais chatas, estas reuniões de colégio!

Leu uma revista de modas, achou bem interessante um conjunto tipo “safári”, que usava bermudas não muito longas, deu um beijo no marido quando este chegou, tomaram juntos um campari e depois passaram à mesa.

Comida leve, saladas, queijo branco, pão integral e um copo de vinho tinto, seguindo rigorosamente a moda. Mesmo quem não gosta, come. E quem não suporta vinho tinto seco, toma uma taça de respeito.

Depois é assistir um pouco de televisão a cabo e o marido vai dormir.

Está quase na hora. Cristina, com uma blusa bem decotada, cabelos bem penteados, maquiagem bem feita, aguarda à hora de ligar o computador, que tem câmera e toda parafernália. Mesmo não sabendo usar o Word, é especialista em chats.

Rodolfo, seu amante virtual há dois meses, que o diga...