Acredite, se quiser

ACREDITE, SE QUISER

Ele sempre fora carnavalesco; fundador de um bloco, folião de rua e de salão, era a própria encarnação do espírito carnavalesco e, durante o curto reinado anual do Momo, um de seus mais fiéis e apaixonados súditos. Mas este ano tudo seria diferente; por mais que tivesse se empenhado, não conseguiu escapar da terrível armadilha que o destino lhe preparara: teria que trabalhar no carnaval! Não em um ou dois, nem tampouco em três, mas nos quatro dias de folia!

Durante anos passara o carnaval em Marataízes, mas este ano, desgraçadamente, o bloco “INADIMPLÊNCIA OU MORTE” teria que sair, pela primeira vez na História, sem o seu fundador. Já incumbira o Alfredo de avisar à turma sobre a tragédia que sobre ele se abatera. Sorte sua que tinha alguém para avisar, senão a turma iria pensar que ele havia morrido. Pelo menos era isso que ele sempre dizia: “No ano em que eu não sair no “INADIMPLÊNCIA OU MORTE” será porque a morte terá falado mais alto que minha inadimplência”.

Tentara de todas as formas convencer o chefe da necessidade premente que tinha de não trabalhar no carnaval; estaria psicologicamente impossibilitado de exercer suas funções com a habilidade que sempre o caracterizara e, sobretudo, seria um causador de acidentes em potencial, pois todos os seus pensamentos estariam voltados para Marataízes. Já estava até com a fantasia pronta: sairia, mais uma vez, de D. Pedro I (como em todos os anos), só que este ano conseguira, junto a um amigo, um chapéu do tipo das cavalarias do tempo do Império. Além disso havia comprado uma bota nova, e sua esposa costurara para ele uma linda casaca, digna de um Imperador. A antiga espada de madeira fora substituída por uma do HE-MAN, que conseguira, não sem muito esforço, pegar emprestada com seu filho. Na verdade, o “Junior” só lhe concedeu o empréstimo mediante um disparo no gatilho de sua mesada. Dos anos anteriores só conservara o bigode postiço e o cavalinho de cabo de vassoura. Teria pedido demissão, não fosse o processo recessivo que, visivelmente, se instalava no país. Maldito Plano Cruzado! Se ainda estivesse funcionando poderia mandar tudo às favas e ir curtir seu carnaval. Depois era só voltar e encontrar uma economia superaquecida, onde não lhe faltariam oportunidades de trabalho.

Bom, não havia escapatória, teria mesmo que se conformar e trabalhar. Estava resignado, afinal, estava em jogo a segurança de sua família. Sua esposa (e isso o comoveu às lágrimas) resolveu não ir para Marataízes com as crianças. Embora fosse, também, bastante chegada a uma folia momesca encontrou, neste ato de renúncia, a única maneira de solidarizar-se com o marido. Ficaram em casa e assistiram ao desfile das Escolas de Samba pela televisão. O “Junior” teria o disparo do gatilho assegurado, mesmo não precisando mais emprestar a espada. No ano seguinte, voltariam com carga dobrada. Poderia até arrumar um bigode novo e, quem sabe, realizar aquele antigo sonho de arranjar um cavalo de verdade pro D. Pedro! Seria a sensação do bloco!

Mas o destino lhe reservara nova surpresa. Acordou no sábado de carnaval com febre, dor de cabeça e vomitando muito. Não sabia o que tinha mas, certamente, não estava em condições de trabalhar. Ligou para o irmão, que era médico e detestava carnaval, e este foi imediatamente socorrê-lo. Mesmo medicado seu quadro clínico só se reverteu na Quarta-feira de cinzas, pela manhã. Naquele dia o expediente teria início ao meio-dia. Ao meio-dia em ponto lá estava ele, munido de seu atestado médico. Chegou e foi direto à sala do chefe, que já o aguardava, ansioso. Seu aspecto era profundamente lamentável, com olheiras profundas que denunciavam horas de sono perdido. Para agravar a situação, estava meio rouco (efeito colateral de algum medicamento).

Sentou-se à mesa do chefe e apresentou-lhe o atestado. O chefe leu, atentamente, e falou, pausadamente:

- Dr. Otávio Oliveira Passos ..... Oliveira Passos .... por acaso é seu parente?

- É sim senhor, é meu irmão. É mais velho que eu um pouquinho, inclusive ..

- Muito bem. O senhor parece que não dormiu neste carnaval, não é mesmo?

- É verdade, É difícil conciliar o sono com a febre.

- Febre, né ...

- 43 graus no Domingo!

- Sei.

- E eu que pensei que ia se um carnaval horrível, trabalhando! Se pelo menos eu tivesse tido saúde para trabalhar, meu carnaval teria sido melhorzinho.

Quando falou isso sentiu que o chefe ficou irado. Mordeu o lábio inferior e cerrou os punhos. Era evidente que não estava acreditando em nada daquilo, e tinha, de fato, todos os motivos para não acreditar numa história descabida como aquela. Também, como é que foi pegar um atestado logo com seu irmão? Tinha sido ingênuo demais! Mas, de repente, lembrou-se:

- O Alfredo! O Alfredo foi a Marataízes! Ele é do meu bloco! O senhor pode confirmar com ele que eu não estive lá!

- Não será necessário. Eu acredito no senhor.

Mas não acreditava. Nem nele, nem no Alfredo. Na verdade já estivera com o Alfredo lá na sala do cafezinho. Estava nas mesmas condições que o seu companheiro de folia: as mesmas olheiras, a mesma rouquidão. Ele não tinha a menor dúvida; o Alfredo seria cínico o suficiente para mentir em favor do amigo de tantos carnavais! Não eram apenas do mesmo bloco, mas também, e principalmente, da mesma laia!

Dois dias depois, o chefe o chama em sua sala. Pensou que sua hora havia chegado. O chefe pede que se sente e oferece-lhe um cigarrinho.

- Pois bem, trago-lhe boas notícias. Estive estudando sua escala de trabalho e verifiquei que o senhor trabalharia no Natal e no Ano Novo. Digo trabalharia, porque julguei conveniente trocar seu horário com o do Oscar. Já conversei com ele e ele não se importará de vir nestes dias, afinal, ele já folgou no carnaval, não é mesmo? Não que eu não confie no senhor, não é isso, ... bem ..... tenho certeza de que o senhor não faltaria também, quero dizer, não adoeceria, mas .... será melhor assim ....... o senhor entende, não é mesmo?

Sim, ele entendia. Precisava mudar de emprego.

Antonio Rocha Neto