Desencontros

Como é bonita a maneira como conversas à toa do dia-a-dia inspiram coisas tão maiores...

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A menina nasceu num dia bege, sem chorar muito e sem exigir demais. Era obediente. Quando o médico exigiu, ela chorou. Quando teve fome, esmiuçou um chorinho por causa da falta de forças. Na verdade, não queria sair do lugar quente onde estava, pois sabia muito bem que apenas uma metade do casal que a concebeu realmente gostaria que ela tivesse nascido.

Essa parte, para ir contra os parâmetros (ou, atualmente, não), era seu pai. Assim que nasceu, foi levada para o berçário, onde ele já aguardava afoito, na esperança de ver que a menina tinha muitos traços seus e poucos do passado torto e, felizmente, acabado. Ficou satisfeito com o rostinho calmo. Ficou sabendo que a mulher já tinho ido embora do hospital, não querendo sequer olhar para o rosto do peso que carregou por nove meses contados pela natureza.

Ele ficou aliviado, pois tinha medo de que, impelida por um sentimento maternal repentino, ela discordasse do que haviam conversado e combinado há 6 meses atrás. Depois disso, não se falavam mais e ele só recebia uns ultra-sons complicadíssimos pelo correio. Mas não fazia mal, logo logo saberia o que todas aquelas manchas significavam.

Resolveu que a menina seria Clara. Durante muitos anos, teve um lar feliz. A madrasta de Clara era sua verdadeira mãe e se queriam muito bem. Eram inseparáveis. Quando Telma engravidou, no entanto, Clara sentiu algo estranho, um sentimento de substituição e passou toda a gravidez da madrasta mais quieta do que de costume.

Quando a criança nasceu, Clara passou horas reparando como o bebê combinava características de seu pai e de Telma, e uma horta de dúvidas começou a nascer sem sementes: de onde vinha esse nariz que ela tinha? E por que seus dedos eram tão longos e finos, se o pai tinha as mãos tão pão caseiro?

Decidiu ir à procura da mãe biológica. Sumiu. Deixou um bilhete explicando o que queria fazer. O pai sabia onde a mãe biológica morava, e sabia que Clara a encontraria, embora nunca tivesse tocado nesse assunto. A garota era quieta, mas bastante esperta.

Algumas semanas se passaram e Antenor começou a ficar desesperado. A filha não tinha celular e nunca ligava e, em visita à casa que abominava, deu de cara com um portão enferrujado e plantinhas crescendo entre os vãos das paredes rachadas. Tinha a certeza de que encontraria a filha ali, mas agora essa certeza era parte da poeira marrom que voava pela fresta da janela que não fechava.

Assim que avistou um vizinho, perguntou tudo o que passava pela cabeça, sem ao menos respirar. Para sua sorte, o tal homem era um assíduo ex-freqüentador da casa de Greta e tinha todas as informações.

--- Apareceu uma moça aí, parecida com ela. Achei que fosse alguma irmã, sei lá. Ela empacotou tudo e foi embora. Com a moça. Pra onde? Pra Bahia. Lá é bem melhor que aqui, né? O senhor veja só. Mulher quando coloca alguma coisa na cabeça, é aquilo e pronto. Não, ela não deixou nenhuma informação, não sei telefone, nem pretendo visitar, viu? Que isso, doutor... Não tem de quê.

Uma forte dor se abateu sobre Antenor, mas ele era um homem de emoções medidas e sabia que tinha uma família que dependia dele. Cada dia era uma espera dolorida e não perdia a esperança de que a filha fosse voltar. Ficava se culpando por nunca ter conversado a sério sobre essa história de mãe biológica. Tinha certeza que tinha cometido um erro. Não deixou de publicar anúncios e manteve o quarto de Clara intacto. O que tinha dado na menina de modos tão tranqüilos para ter uma atitude dessas?

Depois de muitos anos, o cachorro de estimação da família teve um sério problema de estômago e morreu, deixando a filhinha de Antenor com Telma numa tristeza daquelas de quebrar coração de adulto. O veterinário, um jovem rapaz recém-formado, insistiu em abrir a barriga do animal pra descobrir a causa, pois nos exames apenas uma mancha num local incomum pintava a chapa e borrava as idéias do jovem.

--- Alô, Sr. Antenor? É o veterinário. Tinha uma pedaço de papel na barriga do bichinho. Algo num local realmente incomum. O sr. tem interesse em ver?

Não, ele não queria, podia jogar o papel fora. A pequenina, porém, queria se vingar do que tinha feito aquilo com seu cachorrinho e exigiu ser levada, com aquele chorinho de desconsolo, até o consultório. Ela mesma queria queimar o papel.

"Olá, papai. Espero que não tenha se chateado comigo. Não sei o que aconteceu, talvez uma das fases dos jovens. Vim até minha mãe e o senhor não sabe como ela está doente. Tudo bem que ela fez tudo aquilo comigo, mas sabe o que é... ela é minha mãe e não tem ninguém. Espero que o senhor venha nos visitar. Ela pede perdão o tempo todo e gostaria de conversar uma última vez com o senhor. Assim que tudo estiver acabado (porque ela não tem muito tempo, não) eu volto pra casa, certo? Espero que me perdoe pelo temperamento incomum. Venha me ver! Traga a Alice, tá? O endereço é R. Bahia, 143. É pertinho de casa. Não vai nem gastar gasolina".

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