Reminiscências de um Desesperado

Então ele adentrou o apartamento. Olhou à volta. Inacreditavelmente, cada centímetro do local parecia exatamente com o que ele havia visto a apenas algumas horas atrás. Sorriu ao ver a mesinha de centro, ainda com algumas marcas de copo, resquícios do jantar da noite anterior. O jantar em que tudo tinha dado errado.

"Você não me entende! Você nunca me entendeu!!! Você nem ao menos..."

Sacudiu a cabeça. Caminhou pela sala, sempre observando os detalhes de seu apartamento, agora estranhamente sem vida. Por mais que a janela estivesse projetando sua luz quadriculada no chão, como um refletor funcionando à máxima potência, ele não conseguia sentir o conforto da iluminação alaranjada de fim de tarde, que sempre lhe proporcionou tanta serenidade.

"Querido, olha só que lindo! O sol está se pondo, e daqui parece..."

O nosso cinema particular... Não... Aquela iluminação não significava mais a mesma coisa, ele pensou. E nunca mais significaria.

Acompanhou a fileira de retratos em cima da estante, muitos deles mostrando rostos sorridentes, seu próprio rosto, expressando alegria e jovialidade. Momentos de prazer. Sorriu novamente, com ainda mais vontade, ao ver o rosto que aparecia nas fotos tantas vezes quanto o dele.

Ela era linda. Correção. Ela continua linda. Pegou um dos retratos e aproximou de sua visão para olhar com mais precisão a beleza singular e o sorriso meigo da mulher que ele tanto amou. Correção. Que ele tanto ama.

"Amor! Estou ligando só pra dizer que você é a mulher da minha vida, e que estou muito feliz de ter noivado com você, espero..."

Mas porquê, porquê ele tinha que ter gritado? Porquê haviam sempre aquelas horas em que ele parecia se enraivecer com o mundo e descontar tudo em cima dela? A culpa assolava a sua alma, mas mesmo assim ele não deixava de sorrir, cada vez que uma reminiscência o cegava da realidade, e o colocava diante do filme de sua própria vida. As vozes gritando em sua cabeça hora diziam coisas boas, hora o bombardeavam com torpedos de seu próprio arsenal.

"CALA ESSA BOCA, SUA..."

"VOCÊ NÃO SABE O QUE EU..."

"EU SEMPRE..."

Recolocou o retrato cuidadosamente na estante e virou-se, evitando ao máximo o espelho ao lado. Não queria encarar o seu próprio rosto. Não quando as consequências de seus atos o envergonhavam profundamente. Não conseguia pensar que nunca dera a ela o valor necessário, e que agora já era tarde. O jantar havia terminado faziam muitas horas, e ele estava sozinho, confrontado os fantasmas de sua própria consciência.

Lágrimas quentes começaram a escorrer de seu rosto, e para onde olhasse, as memórias de uma vida feliz batiam de frente com memórias recentes de brigas sem sentido. Brigas em que ele gritava sem necessidade, brigas em que o estresse do trabalho, o estresse do dia, faziam-o esquecer que ela nada tinha a ver com seus problemas. Ela só estava ali porque o amava. Desesperava-se cada vez mais ao lembrar da noite anterior, em que ela disse que ia embora, e nunca mais voltaria.

"Pra mim já chega!! Não aguento mais ter que ouvir..."

"Se você realmente me ama..."

Se ele realmente a amava... Secou os olhos e admirou sua própria aliança. Será que ela ainda usava a dela? Se ele realmente a amava. É óbvio, ele era loucamente apaixonado pela mulher que saiu decidida porta afora daquele apartamento depois dele gritar tanta coisa sem pensar. Enfim percebera seu erro. Seu erro foi o da insensibilidade. Seu erro foi não perceber que ali vivia uma mulher que só o queria bem, e que se ela pedia tanto a presença dele, era porquê ela o queria por perto. Mas agora ela desistira. Não voltaria mais. Ele sabia. Tinha tentado ligar, e ela não atendia.

Agora chorava profusamente, e desabou sobre o sofá. Tudo parecia tão confuso. Só queria poder pedir desculpas. Mas não qualquer desculpas. Queria poder dizer que a amava, que estava arrependido de seus atos, e queria recompensá-la. Queria poder dizer que finalmente percebera, que finalmente entendera que não havia a necessidade de gritar. Ele nunca mais gritaria. Nunca mais. Queria tirar essa dor de dentro dele. Essa dor que ele mesmo causou. Seus erros o pisoteavam, e ele já não podia fazer mais nada. Sabia que ela não voltaria. Por mais que ele chamasse.

"Querido?"

Ele a ouvia chamar, e isso o torturava ainda mais.

"Querido...?"

Novamente a voz dela, cada vez mais alta e próxima à ele. E sua visão cada vez mais borrada. Agora enxergava seu apartamento com distorção. Ele precisava responder, dizer que a amava. A vida dele dependia disso.

"Querido, você está acordado?"

E então como um afogado que luta para buscar ar, ele acordou, ofegante, suando, e sua visão entrou em foco. Olhou desesperado em volta, e se viu dentro de seu quarto, deitado na cama. Seus lençóis molhados com seu próprio suor. Seu coração batia acelerado, mas tudo fez sentido quando ele olhou para o lado e a viu sentada, sorrindo, olhando para ele.

Sem dizer mais nada, a abraçou. Forte. E começou a chorar. Ela não entendeu, mas achou engraçado. Retribuiu o abraço, com a mesma intensidade, e recebeu de bom grado o bombardeio de "Eu te amo". Os pedidos de desculpas. As promessas de não brigar mais, de nunca mais gritar. A sinceridade transbordava dele, e ela percebia que ele estava realmente falando a verdade.

Depois do que pareceram vários minutos, talvez várias horas ou várias tardes ensolaradas, eles se separaram. Ela levantou-se, e foi até a cozinha continuar o que estava fazendo. E ele, continuou deitado, ainda com as reminiscências que o desesperaram.

Sabia que não tinha sido só um sonho, daqueles, que você esquece durante o dia. Mais do que apenas um sonho comum, aquilo tinha sido um aviso. De sua própria consciência. Ele sabia que aquilo tinha sido uma segunda chance. Secou os olhos mais uma vez, novamente marejados, e observou sua aliança. Tudo estava bem.

Muitas vezes, fazemos coisas na vida das quais nos arrependemos profundamente depois. E raramente temos uma segunda chance para consertar os nossos erros. Ao magoar as pessoas, mesmo que tudo volte ao normal, aquela ferida ainda persistirá, e a nossa consciência se certificará de que nunca esqueçamos disso. Justamente por não percebermos na hora que estamos sendo errados, é que nos arrependemos depois. Era necessário apenas não dizer aquilo, ou não fazer aquilo, e tudo estaria bem. Muitas vezes queremos voltar no tempo. Ou fazer com que ele pare. Mas a vida não permite. O único jeito de retificar os nossos erros, é evitar cometê-los. É pensar com clareza. É não se apressar. É dizer "eu te amo", quando pensou em dizer "Cale a boca". É dizer "Sim", quando quase disse um "Não", ou ainda um "Não", quando a situação por pouco o fez dizer "Sim".

E quanto ao desesperado envolto em reminiscências? Ele se casou com ela. E nunca mais precisou levantar a voz. Pensava que um dia poderia não acordar de um pesadelo, como aquela vez à algum tempo atrás, em que sua mente foi clareada.

As fotos na estante agora estão em maior quantidade. E um novo rosto se junta ao do sorriso jovial, e ao da beleza singular. Um olhar inocente. Ela tem 1 aninho, e a história que ela mais gosta que o papai conte é a do homem que teve uma segunda chance.

M V Barcelos
Enviado por M V Barcelos em 08/04/2008
Reeditado em 08/04/2008
Código do texto: T936436