CAÇADORES DE OSSOS

 

                   Decidi caminhar no pó das estradas, e sentir  o
                                      aroma do araçá dos longes...
                                       ... e olhar pro céu para encontrar despojos,
                                      a troco de vinténs, na seca do destino.

                                    
  Naquela casa, escondida numa curva,
  sugeria prazeres que meu sonho ansiava.
  E eram os mesmos, os vinténs
  que aplacavam a sede e a fome.
  E tudo era tão bom...

                          (Reflexos da Alma)

 

    1960. Começo de um novo tempo, linha divisória entre o velho e o novo, década que daria início a revoluções em todos os sentidos.

A seca impiedosa se estendia por toda aquela região de Sant’Ana dos Olhos D’Água, onde os últimos pingos de chuva há muito haviam deixado de cair por aquelas bandas e cercanias. O pó das estradas, vermelho e fino penetrava silenciosamente na vida e na alma de cada um. Os regos d’água deixaram de existir, secando também os brejos, os banhados, as nascentes e as lagoas. Tudo era seca, era pó, era tristeza infinda.

O pequeno comércio vivia quase às traças e nas ruas empoeiradas, as gentes do lugar não tinham coragem de deixar suas casas, naquele triste cenário de seca e de pobreza.

    Foi aí que tivemos a idéia,- uma meia dúzia de moleques, a maioria ainda de calças curtas,-  de arrumarmos uma carrocinha de mão, para procurar ossadas, pois com a

terrível seca, o gado estava morrendo nos desérticos pastos.

Zé Martim, cujo pai era dono de um bar, encarregou-se de pegar a carrocinha, enquanto meu irmão Mauro, exercia o comando da molecada, por ser o mais velho.

E lá fomos nós, puxando aquela coisa, pelas estradas empoeiradas, com os olhos para o céu, na esperança de avistar urubus, os anunciadores dos despojos que se apodreciam pelos pastos ressequidos.

Mesmo assim, com toda aquela seca inclemente, a natureza nos oferecia, ora uma goiabinha do mato, ora um saboroso araçá, cujo aroma era pressentido de longe.

E então, as ossadas iam surgindo, aqui e ali, muitas vezes, com os restos do couro e das gorduras que ficavam fritando no sol impiedoso.

Obedecendo às ordens do “Capitão”, íamos colocando os ossos na carrocinha, até enchê-la, com uma certa rapidez e também muito cuidado, porque meu irmão era muito austero e bravo.

Com a carga completa, mandávamos para a cidade a fim de  fazer a entrega ao dono do único ferro-velho, onde também funcionava um engenho, ‘tocado a burro’, cujo pobre animal ficava o dia inteiro, tocando de roda, para moer a cana.

E assim, muitas viagens fizemos com esta carroça, à cata de ossos, que trocávamos por míseros vinténs e, muita garapa, melado e rapadura nos alegraram, naquela casa que ficava escondida numa curva, na saída para a cidade de Guaira.

     (in Sant’Anna dos Olhos d’Água – Crônicas)

                       Vinhedo, 8  de abril de 2008.