Noite de Chuva

Não sei bem em que ano foi. Quando chega nesta parte, tudo desaparece e torna a voltar depois.

Foi numa noite de chuva...

O caminhar lento pela calçada, o vento frio trazendo gotas d’água que molhavam o rosto e davam a impressão de lavar a alma; talvez as duas coisas juntas.

Era uma ladeira, pouco íngreme, mas longa. Em determinados momentos, uma respiração mais intensa e compassada tirava aquele calor dos pulmões de quem já havia subido tanto.

Pensamentos iam e vinham, fugazes, outros nem tanto. Afinal, por que ela resolvera fugir daquela forma? Nunca fugira antes, dizia o que pensava e pronto!

Mas não, a fuga definitiva marcava como os pequenos filetes que desciam ladeira abaixo: nitidamente. Desciam procurando o caminho mais certo e direto, mas descendo sempre, pois a lei da gravidade qualquer criança conhece. “Caiu!”, deve ser a palavra mais pronunciada pela criança bem pequena, que constata a imutável lei física. Mas ela fugira! Não avisou nada, bilhete ou carta não deixou, nem recado. Fugiu para se casar. Não, não haveria volta. Tolice esperar. Casando, ainda tão nova? Talvez não fosse nova como pensava. Vinte e três anos é nova para casar? Pode ser, mas nova, nova mesmo não é não...

Fugiu, não deu adeus, não disse vou embora, não confessou vou casar, não falou nada! Simplesmente sumiu.

A água descendo, lavando a rua de pedra, rua tão bonita com um calçamento de nome tão feio. Paralelepípedo. Estraga a beleza da rua, calçada em pedra, com pequenas separações que permitiam a água penetrar pouco... Era bom olhar a chuva descendo a rua de pedra; escondia um pouco a tristeza de ter perdido a amiga, o melhor era esquecer; passou, passou.

Qual! Quem nesta vida não é bem assim. Tantas coisas, tantos fatos ocorrem e nunca se esquece. A ladeira era mesmo longa. Andava, andava e o fim permanecia distante. De repente, como num passe mágico, dava para ver toda a parte baixa da cidade, luzes acesas, telhados escuros, gente passando.

Foi quando veio o pensamento. Será que ela ainda está viva? Que idéia mais estranha. Deve estar. Tomara que esteja. Viva e feliz, nesta vida de sucessivas abstrações...