Sobre solidões

(Najah ÐL®)

Gosto da letra. Da letra boa, da letra coesa, da mensagem implícita ou explícita e de poder "ver" o outro, o ser humano por trás dela.

Há alguns anos fiz um estudo sobre solidão. Não me ative aos solitários que viviam em asilos ou aos mais idosos que estavam aprisionados em "celas" chamadas familiares, nem me ative aos garotos de rua, aos mendigos sob os viadutos e pontes, os mesmos que tenho conhecimento de campo, me ative à solidão dos que andam pela net.

O resultado foi apresentado em um trabalho por aí, que não vem ao caso agora. Agora quero escrever sobre o mesmo assunto, mas numa postura diferente: escrevo sobre a mentira.

Antes do advento da Internet, as pessoas mais solitárias iam aos bares, ou saiam às ruas em busca de partilhar sua solidão. Nem sempre conversavam com os solitários do caminho, nem sempre bebiam acompanhados, mas estavam respirando o mesmo ar dos outros "vivos". Depois da Internet, as coisas adquiriram uma outra roupagem e os solitários puderam, enfim, abrir-se à presença ausente do outro. Pode soar estranho e soa, sim, mas se você analisar que em épocas de grandes comemorações você encontra salas de bate-papos lotadas, os espocares do msn cada vez mais intensos sejam eles de jovens ou não, e aquele um milhão de amigos, aquele mesmo que um dia escrevi em relação ao orkut, se torna doloridamente e dolorosamente real a cada dia que passa. Você aquilata a imagem de ter muitos amores, muitos amigos, dedica-se a enaltecer seus predicados, dá-se adjetivos, mas está, inegavelmente, só. Apenas a tela lhe faz companhia. Apenas com ela você brinda, quando abre a sua câmera e faz tim-tim com uma taça de vinho ao colega do outro lado da tela. Quando você goza e vê o gozo do outro lado da tela. São e continuam sendo seres sozinhos. Estão conectados com milhares de outros seres, atravessam fronteiras, países e, ao lado, apenas o frio. Não há abraço, não há cheiro, não há carinho. Há apenas a imagem de tudo isso ternamente guardada no coração. Necessariamente guardada no peito como a se ter certeza de que em algum lugar, alguém está presente, em afeto, em amor, mesmo que ligado apenas ao intrincado dos bites.

A mentira do ser que se intitula isso e aquilo, a mentira piedosa de quem apóia, a mentira cruel de quem desdenha e a mentira sincera de quem compactua, fica clara e explícita: seres solitários, tentando à força, às custas da própria sanidade tentar um perfil inexistente e facilmente revelado. E é onde entra a letra. A letra boa a que me referi no início desta. O escrevedor, o escritor, amador ou profissional, que escreve suas linhas, que "fala" através delas, se revela mesmo quando enfeita, quando se fantasia, quando pensa que está modificando a própria história. Alguns entram no mérito de dar crédito, outros apenas passam as vistas, alguns se dedicam a aproveitar a solidão alheia para unir à sua, mas é tão claro, tão evidente, tão óbvio que Fernando Pessoa, já lá atrás, nos tempos outros quando buscava seus heterônimos a lhe fazerem companhia, quando tentava ter seus próprios amigos, mesmo que dele mesmo fantasiado, escreveu:

" O poeta é um fingidor, que finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente."

Quem há de afirmar que tem um milhão de amigos se precisa e está preso à tela de um computador em pleno sábado à noite? Em plena véspera de Natal? Em pleno feriadão? Quem é que pode dizer que tem a vida completa, a vida perfeita, seus parceiros ativos, sua identidade real se precisa abrir-se em algo tão perigoso quanto o orkut, deixando mensagens estranhas que poderiam estar sendo enviadas por e-mails não fosse o desejo quase profano de mostrar-se amado, de ser lembrando em determinado momento, abrindo fotografias e álbuns pessoais visando uma auto-promoção, tentando desesperadamente mostrar-se a que alguém o perceba, o chame, entre em sua vida e lhe faça companhia?

A solidão dos seres está cada dia mais acompanhada. Está cada dia mais visível, cada dia mais perceptível e mais sofrida. O mundo está por cair de tão lotado. A terra está pendendo de tanto que é habitada e o homem ainda precisa mentir para provar a si mesmo que não está sozinho.

Najah DL
Enviado por Najah DL em 07/04/2008
Código do texto: T935432