Histórias de chuva: CORRIDINHA INAUGURAL

“Corridinha inaugural”

Depois que machuquei a minha coluna, nunca mais corri. Mentira. Tentei fazê-lo algumas vezes. No autódromo. Na Alameda Ricardo Paranhos. No Parque Areião. Em torno do Horto, o Zoológico. Não deu certo. Correr, eu corro. Mas dói. Por melhor que sejam as minhas intenções. Ou a companhia. É certo. Confesso que corri pela parceirinha. Ela gosta, ela aprendeu comigo.

Correr é algo deslumbrante. Lembro-me perfeitamente de quando no Exército eu fazia a barba bem cedo e o suor escorria queimando meu rosto. A minha média de treino era 4 por km. Traduzo. Corria um kilômetro em quatro minutos. Estupendo. Geralmente eram 8 km. Um pouco mais de meia hora. Depois ia nadar. Vida boa, essa.

Cada corrida o coração pulsando. A vontade de arrebentar com as barreiras, a vontade de gritar alto. Uma loucura. Alongava antes e depois. Nas competições nacionais de natação, eu raspava as pernas, e quando corria, dava-me a sensação aérea. A do vôo. Da liberdade.

Mas um belo dia desses, recebi um convite. Nem era dia. Era madrugada. Eu não havia testado mais minha capacidade lombar. Estava em repouso. Mas minhas tentativas de nadar borboleta mostravam-me que seria possível um trote leve. Nem dormi.

Acordei as 4 da manhã. Até as quatro e vinte já havia tomado café, ido ao banheiro e me trocado. Apesar do horário de verão o dia ainda estava longe. Manhã fria de novembro. Fiz a barba, também. E saí.

Parado no meio da rua, entre tartarugas e postes, alonguei. Um longo assovio, emiti. Ela prontamente respondeu. Eu não conheço pessoa tão cheia de energia como ela, talvez eu. Mas não vale, somos espelhos infindos. Uma pequena luz, uma saudação, e continuei a seqüência dos exercícios.

Ela passou lépida e fagueira. Segui-a. Não percebi de início as suas intenções. Ela queria fugir de mim. Ela sempre tentou fazer isso. Mas nunca conseguiu. Mesmo distante, bem longe, o pensamento é uno. Uníssono, por bem dizer. Fui me aproximando lentamente.

Demorou um pouco para eu colocar-me lado-a-lado com ela. Nesses anos todos, aprendi os ritmos. Estávamos nos confortáveis 5 e meio por kilômetro. Nem peçam que explique. Eu já falei antes... Não conversávamos. Ela arfava. Eu sorria. Meu hálito era o da manhã, dos eucaliptos, das árvores plenas das primeiras chuvas de Goiás.

Percebi que apesar da passada firme, do movimento de braços à altura da cintura, do queixo reto e quadril encaixado, ela respirava ofegante. Nada perguntei. Quando se ama, basta um sorriso. Um sorriso abre tudo, até o coração mais cheio de dúvidas do universo. Um sorriso é igual ao final de uma maratona, é o sinal de alívio de que o amor sempre vence. Apenas sorri.

Ela foi aumentando o ritmo de maneira discreta. Era subida. Depois uma longa curva para esquerda. Descida. Aumentei a minha passada, claro. Abaixei meus braços, nem soltei. Naquele instante foi o único momento em que lembrei da minha coluna. Mas ela, a coluna, não se lembrou de mim. Fui.

Agora correndo em desabalada carreira, percebi que ela queria que eu a seguisse, e de preferência a derrubasse. Nenhum carro, ninguém correndo. Nada. Nem o dia maravilhoso previamente anunciado, surgia. Só nós dois, no pau. No maior pau do mundo.

Ela fez uma curva radical para a esquerda, entre grades e cercas. Eu a segui. Perdendo a paciência com a sua fuga e surpreendente velocidade, parti para a captura. Saltei em cima dela. Facilmente a abracei. E caímos entortando a grade lateral do estreito caminho. Só um olhar. Só um beijo.

Minhas coxas se esfacelaram na queda. Pior do que dar carrinho no cimento. Uma árvore alta ao lado murmurava um chamado com seu farfalhar de pré-chuva. Levantei-me atrapalhado entre beijos e abraços. Ela ainda em franca tentativa de escape. E prensei-a na grade. Ambas cederam.

Saltamos juntos para o mato. Com a camiseta enrolada nas minhas mãos, afastando o capim navalha, cortei-me. Mas com a corredora enganchada nas minhas costas, coisa que ela fez em um único salto, eu desbravava o ermo local.

Fomos caindo novamente e a passarinhada começou a baixar o vôo. Chovia. Nos amamos entre folhas, lama, mosquitos e suor. Seu rosto em contraste com o mato é uma das mais belas visões que tenho até hoje. O verde com o vermelho. O calor com o úmido. O homem e a mulher.

O tempo ainda era nosso cúmplice. Calmos, tranqüilos. Resolvemos brincar. A chuva nos sedou e nenhum músculo reclamava de toda aquela ação ininterrupta. Agora a cantoria era grande. Amanhecia. O orvalho nos brindava com tensão renovada.

Para ver o sol que de longe promessas de vida nos trazia, trepamos na árvore. Macacos. Dependurados e balançando de lá para cá. E como todo casal que se ama de verdade, o encontro é indefinível e indefectível. Agrupamo-nos. Lá, no alto da galhada. Novamente o instinto se fez presente. Perfeição de equilíbrio e gozo. Ela agarrada em mim e no pau. Em ambos.

Descemos de maneira felina. Voltamos a corrida como se nada houvesse acontecido. Dei mais uma volta. Palavra foi dita. O dia nasceu. E nosso amor, como sempre, renovou-se. E minhas costas nunca mais doeram.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 05/04/2008
Código do texto: T932222
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