Histórias de chuva: GOSTAR DO CÃO É FUNDAMENTAL

“Gostar do cão é fundamental”

A aula dela termina depois da minha. É no Colégio Objetivo de Campinas. Quase não vou lá. Mas sei onde é. Pedi mil vezes para o meu pai para eu levar o carro para o colégio para depois buscá-la. Fiat GLS 1300cc, vermelhinho, toca-fitas Roadstar. Coloquei Earth, Wind and Fire pra tocar, nem sei se ela gosta. Eu a conheci no Jóquei. É linda. Mas também quem não conhece aquele sorriso? Está nas revistas de todo o Brasil...

A última aula é de Literatura, não consigo deixar de assistir. Vou chegar atrazado. E se ela não me esperar? No telefone contou que fez trancinhas no cabelo, deve estar estonteante. Um dos meus melhores amigos está saindo com a irmã dela. Disse que com ela não conseguiria nem conversar, ela é mais velha do que nós. Por mim tudo OK. Criado por pais experientes, não tenho medo. Mas com 16 anos é difícil encarar alguém de 17 anos, ainda mais gata como ela é. Pior do que dar comida pro meu doberman.

Saio correndo da sala. Ainda bem que não tenho namorada. Senão ela poderia me atrazar. Mulher chata, sempre atraza. O carro está estacionado debaixo de uma monguba, caiu um fruto enorme no teto, nem sei se amassou. Abro os vidros. Coloco o som na maior altura. Desabotôo a minha camisa, meu cordão de ouro com o dragão está ali, para me proteger.

Vou pela avenida Anhanguera, que é mais rápido, agora colocaram umas tartarugas, ficou meio esquisito. Tudo bem. Cadê a fita? Ah, não, minha mãe trocou. Só tem o Jorge Ben. Mas tudo bem, lá fora não está chovendo, mas eu vou correndo.

Foi só eu falar e a tempestade cai. Sempre chove na Semana Santa, ela disse que vai viajar para Goiás Velho, vai adorar. Meu pai é de lá, vou mostrar à ela a noite do Fogaréu. Se bem quem eu sou fã mesmo é da malhação do Judas. Ah, pego fogo e malho ela... Como diria o meu cão: aúúúúúúúúú!

Porra, é só chover em Goiânia que o trânsito vira um caos. Na porta de colégio então... Não estou conseguindo chegar na esquina... Olha lá... É ela! Calça branca. Camisa azul toda de lurex. Abraçadinha com os livros, quer ser dentista. E eu, médico. Vamos ficar de branco para sempre...

Num pequeno giro de corpo, ela me vê. Suas trancinhas dão uma chacoalhada para o lado espirrando água. Ela está toda molhada. Eu sorrio. E não vejo a Caravan branca 250S roncando. Brum! Pow!

Subi na tartaruga. Meu pneu furou e a roda está torta. Ainda bem que não bati no carro dele.

- Batista, tudo bem?

- Nossa amigo, você é que está na Caravan, Sérgio?

- É, quase que trombamos. Eu vim buscar a ...

- E eu a ...

- Eu sei, meu nadador. Vai fundo, tô sabendo que ela é sua fã...

- Mas e agora? Nem sei se meu carro anda...

- Vamos colocar as duas no meu carro e você vai atrás, é até melhor. Liberdade de movimentos...

- Mas e o pneu? E a roda? Meu pai vai me matar!

- Vai nada, ele é que nem o meu, se tem mulher no meio, perdoa.

- Ahahahahah!

- Oi ,amor. Que é que foi?

- Nada, não.

- Estragou o seu carro? Adoro vermelho.

- Só furou.

- Pode trocar, eu espero.

Lá fui eu trocar pneu de carro, meio dia e meia de uma segunda-feira, em Campinas. E ela estoicamente, me olhando. Eu fazia força com a chave de roda, e como todo adolescente em fase de afirmação, mostrava meus músculos. Troquei rapidinho.

Antes de entrarmos ela tirou um pouco do meu cabelo do rosto. A água da chuva estava misturada com o meu suor. Eu parecia um cachorro molhado. Num gesto repentino, ela beijou minha testa. Fiquei paralisado. Não sabia o que fazia, ela era baixinha, tinha que ficar na ponta dos pés para me beijar na testa, e eu ainda tive que me abaixar. Num reflexo impensado, a carreguei.

Olhando ali para ela, agora mais alta do que eu, não tinha chuva, não tinha trovão, não tinha mão suja de graxa que não impedisse de beijá-la. Ela foi escorregando, escorregando até travar no pino. Do abraço, do beijo e do meu tesão.

Não falamos nada. Ela entrou. E eu que falo muito e sempre, perdi o assunto. Resolvi dizer o que veio na hora, o que eu estava pensando.

- Nossa, hoje é o dia de vacinar o Bloy, meu cachorro! Já tava esquecendo.

- Você tem um cão? Não havia dito...

- Tem muitas coisas que você não sabe...

- Como... por exemplo?

- Que eu sei onde você vai de tarde, depois do lanche...

- No cinema. Você já me seguiu?

- Sentei atrás só para sentir o cheiro.

- Bobinho!

Fomos conversando sobre tudo e sobre nada. Ríamos. Ríamos muito. Deixei-a na porta da casa dela, mulher molhada é algo bonito de se ver. Não nos beijamos. Fiquei sem graça. Acho que foi a última vez na minha vida que fiquei assim. Mas eu não podia deixar a conversa morrer e nem o encontro. Marquei algo para hoje à noite.

- E aí o que vai fazer de noite?

- Vou estudar biologia, tenho prova.

- Eu te ensino, sou bom nisso.

- Vai lá em casa, então?

Eu jamais poderia ir de carro, depois do acidente. E menino depende das aparências. Mas como dizia minha mãe, se uma mulher quer você, ela lhe quer à pé, no lombo do burro, seja como for. Ela simplesmente o quer. E pronto.

- Que tal nos encontrarmos no meio do caminho?

- Mas não é perigoso, de noite?

- Eu levo meu cachorro, ele protege.

Adorei essa. Bloy era um Doberman imenso, americano, preto, de tórax largo. Ele me adorava, havia nascido e 07 de setembro de 77. Estava com dois anos e meio, imenso, forte. Fiquei imaginando aquele lote baldio. O cão amarrado, só vigiando. E nós atrás daquele muro meio derrubado, nos beijando e abraçando como loucos. Seria perfeito. E a lua, era cheia.

Caminhava cantarolando a musiquinha do Jorge Ben. Dessa vez não choveria, pois raramente chove duas vezes num só dia em Goiânia. Lá de longe eu a vi. Estava de saia comprida, uma bata indiana. Chique. Selvagem. Aí ela gritou:

- Vem correndo e me abraça!

Eu não podia soltar o cão e também não podia ficar parado diante de um convite tão romântico. Disparei com o bicho ao lado. Ele, pensando ser mais uma de nossas brincadeiras, correu também. Mas quando fomos nos aproximando da morena mais bonita da cidade o animal rosnou. Rosnou e avançou. Tive que freiá-lo com toda minha força. Ela tomou um susto tão grande que caiu estatelada no chão. O cachorro latia para ela com muita raiva. Eu não entendia.

Obviamente que o enlevo terminou ali. Nem sei se daria certo, claro. Mas mulher que o cão não aprova, geralmente vai lhe tratar como tal. E mais de uma no pedaço, o animal não aceita. Ruim pra ela, pior pra mim e legal pro Bloy, terminou assim.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 05/04/2008
Código do texto: T932220
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