Carro novo
O tio trabalhara arduamente cinco anos para comprar um carro. Cinco anos de economia de energia elétrica e de água, de alimentos e de artigos de higiene pessoal, de gás de cozinha e de telefone.
Durante cinco anos, ignorou o vestido remendado e gasto da esposa, fechou os olhos aos buracos nos sapatos dos filhos, ironizou as calças coloridas usadas que comprava nos vendedores ambulantes do centro. Cortou o leite, o queijo e o pão da família, substituiu carne de boi por ovos, óleo de soja por gordura vegetal, doces enlatados por frutas roubadas dos quintais desprotegidos. Passou por cima dos apelos do sogro de oferecer pelo menos um peru, um chester ou um frango para a ceia natalina, realizada sempre na casa do velho.
Durante cinco anos, menosprezou os problemas estruturais da casa, não quis saber do telhado cheio de goteiras, fingiu usar a pia do banheiro que não funcionava, minimizou as rachaduras por onde os ratos transitavam hilariamente.
Durante cinco anos a manhã de segunda-feira o encontrava em pontas de estoque ou em liquidações de supermercados, farmácias e empórios, disputando produtos a tapa com outros clientes.
No fim da noite de uma sexta-feira, entrou na rua buzinando entusiasmado. Foi o necessário para os vizinhos curiosos se achegarem rapidamente: Marca, ano e modelo? Acessórios? Quantos quilômetros com um litro de gasolina? Qual o tamanho do porta-malas? Documentação em dia? Assoalhos novos, bancos sem mofo, cintos de segurança e pneus em perfeito estado de uso? Prazo de validade do extintor? Freios novos? IPVA em dia? Seguro? Som? DVD?
No estacionamento, como maneira de agradecer pela preferência do consumidor pela compra, um bagageiro no teto. Quando a família viajasse, explicou o vendedor, souvenir, lembranças, tralhas e bagagens que não coubessem nem no porta-malas nem no interior do carro poderiam ir lá em cima.
Para compensar a família pelo qüinqüênio de privações e, ao mesmo tempo, inaugurar o carro, viagem no dia seguinte. Uma praia de Santa Catarina. Antes das seis, o veículo deslizaria pela pista dupla que cortava o estado.
Ele queria mostrar aos vizinhos o tempo de bonança que chegava. As piadas, as risadinhas de sarcasmos e os cochichos desapareceriam. Um homem respeitado, carro semi-novo, viajando para a praia com a família.
Como estava bastante tarde, pensava em como os vizinhos saberiam da viagem. A esposa, que gostava de fofocar tanto quanto as demais amigas, não conversaria com ninguém até antes da partida. Uma idéia lampejou-lhe a fronte, os olhos brilharam, a ansiedade deu sede e a sede ativou sua felicidade: mesmo se saíssem antes das cinco horas, alguns vizinhos estariam acordados. Eles poderiam espalhar a notícia desde que soubessem, tivessem indícios, provas ou suspeitas da fuga da família.
A esposa não assimilava as idéias do marido, falando e gesticulando alvoroçadamente enquanto explicava o que fariam.
- O bagageiro, disse, procurando uma jarra de água na geladeira. Vamos colocar as malas no bagageiro. Assim, todo mundo vai saber que viajamos.
Após subir as malas, de tão satisfeito, esfregou as mãos, olhou para a esposa:
- O carro é tão bom que as malas nem precisam ser amarradas!
A esposa desconfiou da convicção do marido, mas preferiu não atrapalhar seu devaneio.
Motorista de primeira empreitada em longo percurso, resolveu descansar em um posto de gasolina depois de percorrer ininterruptamente 396 quilômetros.
Assim que desceram, marido e mulher se entreolharam inicialmente surpresos, posteriormente irritados e, finalmente, furiosos. A esposa muito mais furiosa do que o marido:
- Quem disse que não precisava amarrar as malas ao bagageiro?
*Publicada originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 3 de abril de 2008.