Fatalismo dialogal

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– Sendo minha tortura noturna, meus olhos, constantemente, arrancam pedaços de você.

– Tenho é medo!

– De mim? Tenha não. Arrancaria em leves mordidas. Seriam mordidinhas sagazes, tão sutis, que jamais maltratariam além da sua pele macia que em meus lábios sentiria calafrios a cada toque.

– E se me arrancar partes importantes, algo que o tempo não repõe?

– Regurgitaria cada célula, cada pífio escopo do corpo engolido indevidamente, acredita?

– Você é um louco! Como se atreve a regurgitar a mulher que devorou tão habilmente? Aliás, que sonha em devorar. Você sonha demais, garoto. O pior de tudo isso é que estou quase me vendo nos mesmos braços da sua ilusão, voando ao seu lado feito uma adolescente louca e inconsequente.

– Não me deixe em parafuso. Quero você, mas não usaria outro ser como objeto. Quantizamos coisas, não pessoas. Apenas abuso dos nossos corpos e dos nossos desejos que ainda são meras alucinações das nossas mentes conturbadas. Meu corpo quer ardentemente a luxúria do seu. Ele proclama que quer amar, amar perdidamente...

– Todo homem ama perdidamente na primeira vez. Nós mulheres, fêmeas por excelência, somos mais que a excrescência de um mero instante a dois. Somos corpos que se deleitam ao sabor do leite do homem amado.

– Do homem amado? Não são vocês quem nos amam? Sempre discordei dessa forma feminista de acasalamento. Vocês nunca nos deram nada! O tempo verbal, em se tratando de relação homem versus mulher, deve ser um tempo apassivado.

– Ouvimos...

– Não me interrompa!

– Excitamo-nos não apenas com esses corpos de brutamontes que vocês colocam sobre nós. Gostamos de ouvir, de sentir o carinho e o desejo de algo mais. Não somos um hoje, um agora – buscamos um depois.

– Você está sendo egoísta. Não nos iguale a todos, unicamente. Somos corpos, sim, mas nossas mentes, nossas idéias, mesmo as descabidas, são elas que nos fazem dignos de cada fêmea. Somos animais, animais desmedidos e, ‘no mundo animal (nunca esqueça) quem escolhe o parceiro é a fêmea’.

– Eu jamais escolheria você.

– Você já falou isso quando se referiu ao medo. O que me faz continuar é a certeza de que teme suas próprias reações. A fraqueza está em se permitir o primeiro toque, pois sei que se nos tocarmos realmente, fora dessa tela fria que nos separa, você desejará o restante e vai querer tudo de mim, como pessoa, homem e macho.

– Macho? Nossa! Como você consegue ser tão inconsistente. Fala de amor e se me apresenta como MA-CHO! Você é grosseiro... Possui uma gentileza sutil. Por isso existe a dúvida. Afinal, quem é você? O galante poeta que deseja me levar para uma cama aquecida por nossos corpos ou esse pérfido e frio homem que me alucina e apavora?

– Não quero ser o que você busca ouvir. Sei que as palavras iludem toda mulher, da mais pudica a mais requintada. Poderia me furtar da verdade e mostrar apenas partes de mim – as da sedução. Se você gosta de ouvir e se encanta com o que lê, eu poderia ser um mero copiador dos poetas mortos e acender o amor latente que agora não arde em você, tacitamente.

– Você fala de amor, de sentimentos vivos... E se refere aos poetas mortos. Há vida nesse seu mundo de falecidos? Por que você não se faz o meu poeta, o homem vivo que busco? Protege-se por detrás dessa tela tanto quanto eu. Tenta ser sólido, mas se torna frágil demais – frágil e previsível como a morte, como os seus poetas, todos mortos em verbos.

– Não se questione. Por que precisamos das razões de todas essas tolices, se sabemos qual é nossa verdade? Sou sua verdade. Aceite-a!

– E o que você entende sobre a verdade? Nós não podemos ter a mesma objetividade da única dimensão do verdadeiro. E se a minha verdade estiver exaurida, manifestando-se apenas nessas minhas palavras escritas, friamente postas para você? E se eu for uma mentira, a mesma mentira que você se acha tão capaz de dissimular para conquistar as mulheres tolas que se iludem com palavras doces e escritas num momento de carência, responde!

– A verdade é imensurável quando se trata de sentimentos. Não seja simplista, que droga! Sei que somos falíveis e que vocês são todas tolas, vulneráveis demais, quando se apaixonam. A paixão feminina é transcendente, não terrena – talvez por isso tão incompreensível.

– E a paixão dos homens é obvia demais – por isso tão fútil.

– Você me tem por fútil, descartável? E quem disse que me apaixonei?

– Nem quem você é ainda sei. Você mente...

– E você pediu para ser regurgitada. Por quê?

– Você mente...

– Eu não teria coragem de vomitar você de mim... O ato em si é doloroso e não gosto de propiciar dor quando estou a dois; prefiro o prazer recíproco, a doação voluntária de corpos que se unem como se um só fossem. Você busca essa fusão, esse se imiscuir em mim. Não entendo mesmo por que tanta recusa se o seu desejo está mais patente que o meu.

– Você não me leva a sério mesmo! Vomite o meu gozo, seu chantagista!

– Não se vomita o que se conquista com o ardor da pele.

– O meu cheiro, o meu corpo, tudo de mim que posso doar a você, eu o farei sem cobrar nada depois, nem mesmo o seu vômito!

– O gozo é um vômito, sabia?

– É? Estudamos mesmo em escolas diferentes... Não dá pra levar você a sério. Quando penso que obtive o seu respeito você vem com uma tolice.

– Por que acha que isso é uma tolice? Veja subjetividade na vida, moça. Enxergar unidimensionalmente a relação entre a palavra e o seu significado não é próprio de mulher inteligente. Você é inteligente e sabe que tenho razão. Mais ainda: deseja o meu ‘vômito branco’.

– Que nojo! Sinto embrulhar meu estômago. Volte para o encanto que a sua poesia me causa. Não me faça, mais uma vez, ter náuseas. Trate-me como mulher, uma mulher sensível, daquelas que gosta de poesia... Vomite afabilidade, por favor!

Vomitar partes de mim,

Causando asco em você,

Não me faz mal algum.

Sei que o que brota, agora,

Do meu ser, o que aflora,

São gotículas de prazer.

– Você é terrível. O que quer que eu responda. Que amei? Que odiei? Posso chamar isso de poesia ou seria mais conveniente chamar de sacanagem verbal? Isso não se diz a uma mulher, não dessa forma.

– Continue lendo. A poesia ainda não acabou. E isso se diz a uma mulher, quando se tem a certeza da aceitação. Por que continua na tela? Se o que você lê fosse tão asqueroso você não estaria aqui. Sei que gosta. Você é sensível e sabe que a tela sem moldura é como a nudez masculina: criticada em público, mas apreciada na intimidade. Você vocifera palavrões aos meus olhos, mas, na intimidade, está toda derretida. Milhares de mulheres dariam tudo para ser a causa de um vômito. Você não recusaria o meu. Leia!

Você quer vomitar? Não acredito!

Acredito, sim, no que agora toco...

E o meu toque sente fluir, aqui,

O líquido de um análogo orifício,

Potencialmente seduzido, assaz,

Pelo odioso (risos) vômito meu.

– Desisto!

– De fugir ou de mim?

– Essa resposta eu darei olhando nos seus olhos. Quero ver se essa ousadia se perpetua num diálogo presencial.

– Se isso foi um convite para sair, esqueça! Sou caçador e fiz o meu papel. Agora posso sair e dar um adeus. Não haverá encontro – a minha vida se faz ao sabor das frustrações que a eterna dúvida impelirá ao coração caçado.

– Safado! Não corra de mim, não dessa forma.

...

Sua mensagem não foi enviada porque no momento ‘A poesia é eterna’ parece estar offline.

Nijair Araújo Pinto

Juazeiro do Norte-CE, 8 de novembro de 2006.

11h46min