O CAÇADOR DE RAPOSAS FERIDAS

O CAÇADOR DE RAPOSAS FERIDAS

MILTON LOURENÇO – 30/03/08

Mais uma vez, como sempre fazia, o dono da granja saiu com seus cães para caçar. Os cães eram bem treinados e obedeciam fielmente a ele.

Durante a caçada ele encontrou uma jovem raposa muito ferida, vítima de várias lutas contra seus inimigos da floresta. Os cães rapidamente rodearam a raposa, mas não houve reação dela, pois apesar de muito esperta ela já não tinha mais força para enfrentar qualquer inimigo.

Bastava uma ordem do caçador para que os cães estraçalhassem a raposa. Sem explicação, olhando para o ferido animal, o caçador ordena para que os cães se afastem, e resolve ajudar a esperta raposa. Outros animais não seriam tão piedosos. A morte era certa.

Ele poderia seguir seu caminho e deixar que os próprios ferimentos matassem a raposa. Ela estava sozinha e muito ferida pelas lutas diárias.

Causando surpresa aos seus cães, o caçador estende as mãos e a desconfiada raposa, sem entender nada, aceita a ajuda. Ela não tinha muita escolha naquele momento. De longe, escondidos no mato, outros animais só esperavam o caçador se afastar para acabar de vez com a esperta raposa.

Como a caça já era suficiente o caçador e dono da granja resolve retornar e cuidar da raposa ferida, colocando-a próximo ao galinheiro, mas sob sua discreta observação e vigília de alguns cães que não entendiam aquela decisão. Para muitos, era insana, improvável, inadmissível e doida.

A própria raposa não acreditava no que estava acontecendo e meditava: “O que passa na cabeça desse caçador? Eu sou raposa. Mesmo ferida, solitária e quase morta; sou uma raposa. O instinto ruim de devorar ovos e galinhas já nasceu comigo. Nunca me falaram que eu deveria agir diferente”.

A raposa, cada vez mais confusa, parecia delirar, segue meditando: “Já roubei ovos. Já enfrentei cães ferozes. Já fui presa por caçadores. Já fui abandonada pelo meu bando por causa da minha agressividade. Já fiz muito mais coisas ruins que as raposas mais velhas, apesar de ainda ser bastante jovem”.

Os cães do dono da granja também comentavam entre si: “Sempre fomos bem treinados, alimentados e protegidos. Sempre acatamos as ordens de nosso dono. Quando erramos com desobediência ou rebeldia ele, de alguma forma, nos pune. Agora ele trás essa raposa que nunca foi treinada por ninguém para tomarmos conta como se fôssemos babás”.

Demonstrando certo ciúme, os cães seguem com seus comentários: “Nosso dono até diminuiu as caçadas depois que ela chegou. Parece que ele só tem tempo para essa raposa. Raposa é raposa... Cão é cão não dá pra misturar”.

O caçador e dono da granja, com toda sua experiência, administrava o pequeno conflito entre os cães treinados e a ferida e esperta raposa. Ele sabia que os cães tinham certa razão, mas também tinha a certeza que um dia eles iriam entender o porquê daquilo tudo que estava acontecendo na granja.

Até os outros donos de granjas não entendiam a decisão daquele caçador e comentavam quase ao mesmo tempo a respeito do protetor da raposa: “Ele tá maluco! Onde já se viu trazer uma raposa para uma granja. Nunca faríamos isso. Já que ele não quis matar a infeliz raposa, que a deixasse morrer na floresta. Ela que não se atreva a chegar perto do meu galinheiro. Meus cães estão doidos para devorá-la. Raposa é raposa. Tá no sangue. Não melhora nunca...”.

O tempo foi passando e a raposa já não corria o risco de morrer por causa dos ferimentos, que cicatrizavam espantosamente, mesmo contra a vontade de muitos.

O dono da granja já não caçava tanto, sua atenção estava voltada para a recuperação da raposa. Ninguém entendia o propósito daquele homem. Ele mesmo às vezes ficava se perguntando: “Será que estou fazendo a coisa certa? Porque será que ninguém me apóia? Porque quem deveria ou poderia ajudar não o faz? Porque me preocupar com uma raposa ferida, se meus cães estão bem treinados e minha granja produzindo?”

A cada dia novas perguntas iam surgindo na mente daquele caçador e dono de granja. Porque? Porque? Porque?... No íntimo ele tinha as respostas.

Logo assim que a raposa recomeçou a andar, o caçador passou a mostra para ela o funcionamento da granja e tudo que lá existia. Mostrou os ninhos. Mostrou as galinhas. Mostrou os ovos. Mostrou o lago. Mostrou tudo.

Ao mesmo tempo também ia mostrando onde era perigoso e onde não convinha que a raposa fosse: mostrou o fogo que aquecia, mas que também queimava. Mostrou o alto da montanha de onde se tinha uma maravilhosa visão de toda granja, mas que uma queda daquela altura era morte certa. Mostrou os rios e lagos com águas claras e serenas, mas que também afogava. Mostrou as ervas aromáticas e adocicadas, mas que em excesso ou utilizadas de maneira errada intoxicava e matava.

A raposa ia aprendendo a cada passeio com o dono da granja tudo aquilo que sempre existiu, mas que ninguém nunca se dispôs a mostrá-la.

A inveja, o ciúme, os maus pensamentos, a descrença e tudo aquilo que contribui para o fracasso e a maldade também iam aumentando a cada passeio da jovem raposa, mas ela, esperta por natureza, procurava aproveitar ao máximo tudo que o caçador lhe ensinava.

Ela já não tinha aquela desconfiança inicial e realmente acreditava que algo de novo estava acontecendo na vida dela.

Ela já não sentia vontade de roubar ovos; de enfrentar cães ferozes ou fazer qualquer outro tipo de coisa ruim. Não tinha mais sentido perder tudo.

Ela começou a entender que apesar de ter nascida raposa (com todo instinto selvagem) havia algo melhor e que ela nunca tinha experimentado, e a cada dia o caçador estava mudando sua vida.

Nunca ninguém havia lhe alimentado quando sentia fome. Nunca ninguém havia lhe aquecido quando sentia frio. Nunca ninguém havia lhe mostrado o certo e o errado quando ela mais precisava. Todos só queriam prendê-la, machucá-la, matá-la, etc...

Sempre a trataram com instintos mais selvagens que o dela, mesmo eles possuindo alimento, moradia, calor e amor.

A raposa sentia que o dono da granja, apesar de ser caçador, demonstrava amor, confiança, solidariedade e também cobrava: união quando a levava para caçar com os cães treinados; disciplina para aprender a cada dia tudo que lhe era ensinado e responsabilidade em tudo que fizesse ou aprendesse.

A todo tempo o caçador mostrava que a raposa tinha que aproveitar ao máximo a oportunidade que lhe estava sendo dada. E ela entendia e procurava não trair a confiança, o amor e os ensinamentos daquele homem que treinava cães, raposa ou qualquer outro animal, principalmente os que estão feridos e perdidos na floresta, morrendo sem que ninguém tome conhecimento.

Alguns poucos donos de granjas entenderam o quase solitário objetivo daquele caçador que acreditava que quanto mais raposas fossem treinadas menos raposas existiriam para atacar o seu galinheiro.

E ele continuava caçando e treinando raposas feridas, mesmo com a incompreensão e comentários desanimadores da maioria dos donos de granjas.