O PECADO DA VIRTUDE


 

A tarde estava quente e abafada...

Sem vento o ar se tornava sufocante.

Dolores já tentara estudar um pouco,

mas, a necessidade não conseguia superar a vontade, que se tornava pouca, no marasmo que o dia quente provocava.

Acumulavam-se os textos a ler e os trabalhos jaziam espalhados ao léu, feitos pela metade.

 

Levantou-se alongando o corpo.

Foi até o espelho, escovou o cabelo, prendendo-o no alto da cabeça.

Abriu uma das gavetas onde costumava guardar “velharias” -

algumas lembranças que ainda não se encorajara a queimar.

Lá estava o antigo “Álbum de recordações” com capa marrom de couro. Leu algumas páginas...

Pessoas haviam deixado impressos versos, homenagens, acrósticos.

Alguns datados há mais de trinta anos...

Lembrava-se  do rosto de cada um. Nunca esquecia das pessoas com que mantivera contato.

Sorriu pelas lembranças despertadas... Fora uma bela época!

 

Algumas cartas...Houve um tempo em que as pessoas escreviam cartas!

Desdobrou o papel, amarelado pelo tempo. Um belo papel de carta.

Cartas de seu avô. As letras bonitas e legíveis já tinham quase cinqüenta anos

 

Conhecera o avô quando tinha apenas quatro meses de idade, pois moravam em cidades diferentes. Conta a sua mãe, que quando ele a segurou no colo, nem mesmo ela conseguia retira-la, tal o modo como se agarrara ao avô.

Um sentimento forte se instalara desde o primeiro instante entre os dois. Sentimento conservado até a hora da sua morte, aos setenta e oito anos.

O avô sempre lhe escrevia cartas.

Orientava-a sobre diversas coisas. A virtude do decoro e da castidade eram as mais enfatizadas...

Ser uma boa menina, ouvir sempre os mais velhos, ir a missa todos os domingos, ser boa com os irmãozinhos.

Evitar sempre o pecado, que se apresentava de tantas formas disfarçadas...

 

Como era difícil seguir todos esses conselhos!

Mas, se esforçava ao máximo para não decepcioná-lo e continuar sendo “o anjo do vovô”. Pobre avô!

Será que alguma vez imaginou o quanto o fantasma dessas palavras iriam assombrar a vida da sua menina? 

O quanto suas palavras a afastaram da espontaneidade de ser ela mesma com todos os defeitos e pecados?

Não, com certeza jamais ficou sabendo do peso que essas palavras tiveram na vida  contida e correta da neta.

 Ainda bem!

 

Dolores secou algumas lágrimas que teimaram em rolar pelo rosto. Não devolveu as cartas na gaveta. Levou-as para um canto do quintal e queimou-as.

Uma a uma.

Purificou seus pecados nas chamas quentes que logo se extinguiram.

 

 

 

 

Zélia Nicolodi
Enviado por Zélia Nicolodi em 02/04/2008
Código do texto: T928232
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