PASSAGEM DAS HORAS

Duas e meia da manhã, procuro abrigo à minha volta mas o silêncio é soberano. Estou paralisada e alerta; a casa dorme.

A noite envolve tudo em sua escuridão e silêncio, nada mais há para ser pacificado. Estou acordada e só.

Vou à janela em busca de algo que deve estar lá, e da rua alguém me vê e passa, me olha sem me ver e não percebe que para mim nada há para ser visto, acabo de perder algo que não está ali e em lugar nenhum. O relógio em meu pulso revela que a noite acontece e que eu, totalmente deslocada de tempo e espaço, preciso aceitar o compasso das horas, que tirano, descompassa meu coração e não me deixa dormir.

Volto a deitar e procuro novamente a posição perdida que tanto me acolheu na hora do sono, no conforto macio dos lençóis de minha cama. Deitar e dormir parece um sonho para quem o perdeu, assim tão de repente quanto começou. Pareço perplexa diante da arte involuntária de buscar um prazer restrito só disponível no âmbito da inconsciência.

Três da manhã. Vou ao banheiro, os olhos que se recusam a abrir diante da luz são os mesmos que se recusam a fechar quando volto a deitar na espera vã de que volte a pegar no sono. Por vezes me aborreço com o sono plácido ao meu lado tão profundo quanto a angústia que me invade de inveja diante daquilo que não consigo fazer – dormir!

Meus olhos pesam cansados, na luta inútil de buscar o que já foi. A memória, acesa agora, trás em turbilhão o desconforto de imagens difíceis de digerir quando não se tem fome de desafios. E àquela hora quem tem? Seriam as lembranças que espantam o sono ou a falta dele é que as move estrategicamente numa dança sem nexo de trás para a frente? Aceito com relutância o desafio interno e deixo correr em minha mente tudo o que o dia não me deixa lembrar: o temor do telefonema inesperado, a suspeita sombria de algo indesejado, a violência lá fora a espreitar a vida dos que amamos ou simplesmente as dores diárias sob a lupa da insônia. Tudo parece inutilmente grande, e o silêncio da noite completa a cena que se repete lenta e compassadamente.

Só eu tenho pressa, e por isso mesmo nada acontece.

Levanto novamente, ando um pouco, mas o espaço é reduzido para tanto desconforto e possibilidades. Olho para a tv agora muda e penso na companheira silente e incapaz de qualquer ajuda já que o sono impera - fora de mim e à minha volta. Exceto por minha angústia, para tudo o mais o silêncio é absolutamente necessário.

A janela novamente me convida mas meus olhos já sabem o que encontrar, ali acontece o que todos esperam neste momento – nada! O sono é dos justos, aos incautos resta somente a passagem compassada e silente de uma noite sem fim. Triste e sem graça me percebo boba diante da solidão que rende o cansaço e submete o descanso que não chega.

Quase quatro, e finalmente recorro resignada ao meu canto macio que aguarda pacientemente minha volta. O frio me empurra para dentro das cobertas e sentada no escuro, procuro alento nos travesseiros ainda mornos abandonados momentaneamente pelos passeios na madrugada.

Resolvo que o frio não me convence e aceito o conforto físico de sentar ali e esperar sem resistências, nada mais há a fazer pois logo o dia vai surpreender todos os que o aguardam refeitos.

Agora estou melhor. Aquecida e protegida de mim mesma no carinho macio e morno que me envolve, acolho as orações que conheço e as deixo dominar os espaços conscientes que vão pacificando cada uma das lembranças há pouco sofridas. Meus olhos cedem, a mente reluta, e num rosário de preces as imagens se revezam e me embalam definitivamente para outra realidade.

O compasso se perde junto comigo até que a luz, chegada há pouco, venha lembrar que o dia só está começando e que recomeços só são possíveis quando se perde o rumo do tempo e a certeza do descanso.

anadijk