Projeto "Novos Rumos" ou: Capitalismo é isso aí, bicho

PROJETO "NOVOS RUMOS" OU: CAPITALISMO É ISSO AÍ, BICHO

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 02.04.2008)

A coisa aconteceu mais uma vez - aliás, esse tipo de coisa vive se repetindo a toda hora, a gente é que não fica sabendo nem presta muita atenção quando sabe: o objeto chega, imbuído da autoridade efêmera que lhe dá o cargo que ocupa, chama o funcionário de longa data (14 anos de empresa, 21 anos, até mesmo alguém à beira da aposentadoria) e lhe fala que tem uma proposta a fazer. Geralmente não chega a dizer que a proposta é irrecusável, mas isto não precisa ser dito em palavras: o tom e o roteiro da conversa são eloqüentes por si sós.

A proposta, diz o chefe com olhos brilhantes de excitação e entusiasmo como se rezasse para que seu chefe, o diretor, lhe propusesse algo semelhante, é na verdade um grande desafio, o maior de todos os desafios, sem sombra de dúvida, que o funcionário, tão competente sempre e tão dedicado aos interesses da empresa - o gerente faz questão de sublinhar esses predicados do seu subordinado -, jamais recebeu em tantos anos de carreira: uma mudança.

- Mas já mudei de departamento, de cidade e até de estado. Cheguei a morar uns tempos no exterior para cuidar do desenvolvimento de produtos. Por causa dessas mudanças, meus filhos tiveram alguns problemas na escola e, a cada vez, minha mulher precisava adaptar-se a um mundo novo de relações, amizades e interesses profissionais totalmente diferente, às vezes até mesmo hostil - o funcionário sabe que está lívido, aquela súbita reunião não lhe cheira bem, especialmente depois dos boatos que circularam pelos corredores e correios eletrônicos. - Claro, os objetivos da companhia são os meus objetivos pessoais, entretanto...

- Sua mulher é que está certa! - o chefe abre um vasto sorriso para cassar a palavra daquele sujeito ali, e pensa: "é sempre a mesma coisa, esses caras vêm sempre com o mesmíssimo discurso, que troço chato, que falta de imaginação!" - Ela está corretíssima, sua mulher, e vai poder te ajudar um bocado, te ensinar muita coisa, dizer como saltar barreiras, como contornar obstáculos, como enxergar o horizonte do outro lado e tirar o melhor proveito das situações e oportunidades que surgem à nossa frente.

- Quer dizer então que... - ele não tem coragem de completar a frase com aquilo que se recusa a admitir.

- Isso mesmo! Parabéns! Sua argúcia continua afiada! - "cara", pensa o gerente, "tudo neles é padrão mesmo, conforme prevê o manual do RH para esses casos". - Meu convite é para contar com a sua adesão ao nosso Projeto NoRu: uma boa grana para aproveitar melhor as oportunidades que o mundo oferece às pessoas decididas como você. Novos rumos profissionais, novos rumos na vida pessoal e familiar, as ricas possibilidades de ser um empreendedor de sucesso, o chefe da sua vida, do seu destino, o chefe do seu nariz.

- Demissão incentivada... - ele murmura.

- Ótimo profissional. Você vai se dar muito bem lá fora, tenho certeza. Quem sabe um dia você não vem a ser meu chefe, hem? Já pensou? Além disso, veja o lado bom da situação: amanhã você já não precisará mais levantar cedo, pôr terno e gravata, e vir para cá. É o seu adeus festivo à rotina!

Arrasado, pulverizado, humilhado, aquele sujeito ali ainda considerou: um projeto inteiro de vida jogado assim no lixo! Complementação salarial e plano de saúde na aposentadoria escoando pelo ralo! Por que não me levanto e dou um murro bem dado no meio das fuças desse filho-da-puta? (Atenção para os hífens. Consultem seus dicionários, por favor.)

(Amilcar Neves é escritor e autor, juntamente com Francisco José Pereira, do livro "O Tempo de Eduardo Dias – Tragédia em 4 tempos", teatro, Editora Garapuvu, Florianópolis, 2005.)

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 02/04/2008
Código do texto: T927182
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