A vida após a morte
A Vida Após a Morte
Heloísa estava pra hora da morte com as sandices de Otávio, que agora abusava da velocidade numa estrada de mão dupla.
– Minha Nossa Senhora! Vai mais devagar nessa chuva, Otávio! Quer morrer, homem? Olha que o carro vai... – e parou por aí. Ela.
O carro aquaplanou. Tombou, rolou ribanceira abaixo, quicou, dobrou, pegou fogo, tudo o que tinha direito. E o Otávio e a Heloísa pegaram fogo também: tudo o que tinham direito.
Tão logo chegaram no inferno, foram dirigidos ao cadastro do Setor de Mortes em Trânsito, do Ministério de Recepção de Mortes Instantâneas. Era uma sala de espera sem fim, igual essa nunca tinham visto. Pegaram a senha duzentos e vinte e três, sorte que estavam sem dores. Cutucaram-se, como quem pergunta o que é que faziam naquela fila, naquele calor infernal, logo eles que dizimavam. Apesar de embasbacados com a sacanagem, acharam por bem não se mostrar insatisfeitos com a estada no inferno, que podia soar ao diabo um errôneo tom de insatisfação. Resolveram então perguntar a um estagiário espinhento de crachá amarelo e azul que fazia fichas e fichas, a maior parte delas de pessoas apresentáveis – que não apresentarei por discrição.
– Ô, rapazinho, pode dar informação?
O prezado leitor na certa vai achar que é gracejo meu, mas foi assim mesmo que o estagiário respondeu, mascando chiclete:
– Ah, tio, vá pro inferno! Primeiro assiste o “vidjozinho”, depois pergunta.
O vidjozinho em questão, como Heloísa e Otávio vieram a saber, tratava-se de um teipe muito atraente, renovado anualmente pelo Ministério de Informação e Promoção de Comunicação. Na tevê elecedê, um homem de terno preto muito alinhado e as mãos entrecruzadas fez as honras:
– Prezados visitantes, sejam muito bem-vindos! – sorriu amistosamente, como só o capeta poderia fazê-lo. – Meu nome é Orestes e mostrarei a vocês durante esta apresentação que durará aproximadamente uma hora e vinte minutos a nova vida no inferno: o sistema de trabalho, nossas dependências...
O vídeo mostrou os dormitórios (divididos entre masculinos e femininos, o que suscitou um aaah de desânimo de boa parte do público que cria enfim estar no paraíso), os refeitórios amplos e bem iluminados, e por fim a área comum – uma praça com bancos, pombos e várias mesas para jogos de carta. Mostrou ligeiramente também chopens, lojas, boates, de tudo.
O trabalho no inferno era especialmente organizado e acessível. Da mesma forma como havia a entrevista com o corpo de psicólogos, havia também testes físicos, cognitivos e até vocacionais, que admitia a possibilidade de você ser transferido para o Ministério de Migração e Relações Exteriores – de onde os menos aptos ao exigente cotidiano diabólico ou que demonstravam algum tipo de manejo artístico eram remetidos ao Céu.
Heloísa pediu para ir para o Céu com o marido, mas ao saber que ele não poderia ir (questão de mérito, senhora, não posso fazer nada) desistiu e foi encaminhada para a cozinha do refeitório de uma das alas mais chiques. Otávio que pediu para ir para o Céu e sequer se lembrou de perguntar pela esposa irritou o psicólogo, que o mandou limpar banheiro no dormitório masculino. Bem feito. E ainda teve de fazer cerão a noite como pena que o Ministério de Crime e Castigo determinou pela imprudência na estrada que culminou com a morte dele e de Heloísa.
Agora ele via, sentia, cheirava, sabia que homem era igual porco, com a diferença de que não admitia viver em chiqueiro. Se limpava às três, às quatro estava tudo sujo por vinte. Se limpava às quatro, tinha limpeza de trinta pra fazer, para às cinco precisar de limpeza. Limpa, suja; suja, limpa, suja. Mas ele mesmo não se limpava. Por pouco não entendeu porque estava ali.
Assim passou muito tempo, até que por pedido de Heloísa ele foi para o Ministério de Finanças, voltando a trabalhar como contador, sua profissão terrena – ainda cheirando a merda. O diabo aceitou fazê-lo com a contraproposta de que seria ela quem assumiria os cerões dele, trabalhando doze horas diárias na cozinha e folgando apenas no domingo, com o agravante de que seria apagada das lembranças de Otávio.
Heloísa trabalhou sem uma falta, uma reclamação, um senão, até que irritou o diabo, que a despachou pro Céu vermelho de raiva.
Otávio comprou um carro, uma mulher, uma casa, um papel e esqueceu da vida, esqueceu dos outros, esqueceu de si. E da morte.