Crônica sobre o amor desperdiçado

Ele era goleiro do time de futsal da escola. Nos conhecíamos do grupo de teatro. Ele usava aparelho, tinha as bochechas permanentemente rosadas, coisa que eu achava lindo, e era super extrovertido e brincalhão. Não era bonito, mas era extremamente simpático.

Diferente de outros dos meus pedestais, ele insistia em ser legal comigo. Eu não entendia muito bem o motivo, mas ele fazia questão de sempre vir conversar quando me encontrava pela escola. Muitas vezes, enquanto ele estava treinando na quadra e eu passava, morrendo de vergonha, tentando me esgueirar entre as colunas, ele gritava meu nome e acenava de longe. Às vezes eu fingia que não via ou não ouvia, de tanta vergonha que sentia.

Era três anos mais velho, ou seja, enquanto eu estava na oitava série e tinha entre 13 e 14 anos, ele era aluno do terceiro ano, com uns 16 ou 17 anos. Morávamos próximos, e fazíamos caminhos parecidos, tanto na ida, quanto na volta para a escola.

Era quase inevitável encontrá-lo sempre que meu cabelo estava mais bagunçado ou quando eu saía de casa correndo sem nem olhar direito para qual roupa eu pegava no armário. Mas ele sempre vinha me abraçar, sorrindo, e às vezes carregava a minha pasta até a porta da classe (a sala dele ficava no mesmo corredor da minha).

Eu mal falava com ele, dificilmente o encarava, apenas sorria e concordava com uma coisa ou outra que ele dizia, geralmente algo trivial, algum trabalho, algum professor, a peça que ele ensaiava, o tempo, ou alguma brincadeira sobre futebol (ele era palmeirense). Quando ele se afastava, eu suspirava.

Pensava nele durante a tarde, escrevia cartinhas que nunca entreguei, um dia comprei um cartão lindo na papelaria e escrevi tudo o que eu sentia pra ele. Cheguei a deixar o cartão por semanas a fio dentro da pasta que ele mesmo carregava pra mim, mas nunca entreguei.

Numa tarde qualquer (me lembro até hoje da sensação ruim que senti, foi horrível) voltei para a escola para fazer um trabalho, e o encontrei sentado num dos bancos da pracinha que ficava dentro do colégio, de mãos dadas com uma menina loira, mais velha que eu.

Foi uma cena ridícula, parecia um filme. Eu parei no meio da praça, até que ele me viu. Então eu virei as costas e entrei rápido na biblioteca, nervosa, querendo chorar. Parei no balcão da biblioteca arrasada, as minhas mãos formigavam de nervoso, coloquei o material no balcão e fiquei apoiada ali, olhando para o vazio, parada.

O pior foi o que veio depois, ouvi a voz dele atrás de mim. “Tá tudo bem, Tifa?” era como ele me chamava, por conta de uma personagem do teatro. Não olhei, apenas fiz que sim com a cabeça e abri um dos livros que estavam no balcão. Ele ainda se aproximou mais uma vez, fez um carinho no meu cabelo: “Tem certeza?” Eu o olhei, dessa vez, as lágrimas escorriam pelo rosto. Disse que sim, tinha certeza. Ele ficou me olhando um tempo, calado, depois me deu um beijo na cabeça e falou pra eu me cuidar.

Não lembro de mais nada daquele dia. Não sei se fiz o trabalho, não lembro como cheguei em casa, nem como tive forças pra me levantar no outro dia e ir pra escola. Só me lembro que naquela tarde eu queimei o cartão que havia escrito pra ele.

Na semana seguinte, de manhã, encontrei os dois juntos, de mãos dadas, indo pra escola. Estavam felizes, conversando, e ele carregava a pasta dela. Acho que nunca senti meu fichário tão pesado.

No fim do ano, última semana de aula, ele veio na minha sala. Era um intervalo entre a penúltima e a última aula. “Tifa!”, ouvi da porta. Sorri, meio tímida. Fazia muito tempo que não conversávamos. Depois que ele começou a namorar nunca mais me chamou no meio do treino, só nos víamos no teatro, e ainda assim só nos cumprimentávamos de longe.

Fui até a porta. “Não venho mais, fechei em tudo, estou saindo fora dessa escola pra sempre. Vim te falar tchau.”, ele disse. Estava feliz, bochechas rosadas, e sem aparelho. Eu reparei, mas não falei nada. Desejei boa sorte pra ele, falei pra aparecer na saída da aula vez em quando.

Ele disse que viria sim, claro. Depois ficou uns segundos calados e falou um pouco mais sério, como quem dá um conselho. Disse que eu devia olhar mais nos olhos das pessoas, que eu tinha olhos muito bonitos. Me deu um beijo no rosto e eu senti um cheiro de Styleto (aquele perfume antigo e verdinho da Boticário).

Quando ele foi embora, uma menina da sala parou do meu lado na porta. Não falava muito com ela, era mais velha, mais “descoladinha”, o oposto de mim. Ela brincou comigo, algo do tipo “Você faz jogo duro mesmo com o R., héin”.

Fiquei olhando pra ela com uma cara de interrogação, mas ela não disse nada também, mesmo porque ela já estava conversando com outra pessoa. Não vi mais o R., fora umas duas vezes, no metrô, meio apressado, em que ele nem me notou. Ele nunca apareceu na porta da escola como eu pedi. Também nunca tive telefone dele, nem nada. Nunca perguntei qual era.

Mas naquela hora a minha ficha caiu. Eu o tinha perdido. A gente só não vive o que não se permite viver. Simples assim. Eu me achava nerd demais, feia demais, esquisita demais, me julgava tanto, tanto, que nunca parei pra pensar sobre o que ELE achava de mim.

Talvez se eu tivesse me permitido mais, a história tivesse terminado diferente. Talvez eu tenha sido uma pedestal pra ele também, e nem sabia. Vendo a história pelo outro lado, eu era aquela menina séria do teatro que sempre ignorou seus chamados, que não olhava para ele, não o encarava nos olhos, aquela que respondia as conversas balançando a cabeça enquanto ele carregava minha pasta.

Talvez naquele dia da biblioteca ele tivesse entendido, mas aí já era tarde. Juro que não sei porque exatamente estou contando isso tudo, mas algum motivo deve ter. Você aí, que está lendo, já entregou um cartão lindo declarando seu amor hoje? Tá em tempo, héim...?

"Da primeira vez que você me ascendeu seus olhos

desviei dos meus, pois o brilho era intenso...

Que fatalidade, você me entendeu do avesso

e pensou que eu não aceitei seu olhar...

Desentendimentos marcam nossa relação

eu te digo sim e você me escuta? Não.

Não sei o que faço pra gente se acertar

outra vez, vou tentar...

Então preste atenção, não me entenda mal

até que eu sou uma pessoa legal

especialmente com você

e me esforço tanto pra não machucar ninguém

vamos falar a mesma língua, pro nosso bem..."

(Ludov - Da Primeira Vez)