A menina descalça
Ela entrou no vagão do Metrô e imediatamente olhei-a. Vestia uma túnica comprida e larga, de mangas também compridas, feita com um tecido rústico e grosseiro em dois tons de marrom. À cabeça, levava uma espécie de véu, do mesmo tecido e cor, que lhe cobria totalmente a cabeça e chegava até depois da cintura. Ali, na cintura, um cordão de algodão cru também comprido e amarrado com um nó fazia as vezes de cinto; e no pescoço outro cordão, escuro e mais fino, sustentando um grande crucifixo de madeira rústica.
Notei imediatamente seu belo rosto, sem um traço de maquiagem, aparentando não mais de vinte anos. Procurei qualquer outro sinal de feminilidade, e encontrei uma aliança grossa e dourada no dedo anular da mão direita. Noiva de Cristo? As unhas, curtas e disformes, pareciam as de um menino. Não pude ver se a cruz que carregava se tratava do Tau, mas a roupagem me remeteu aos franciscanos.
Mas o que mais me chamou a atenção, e o que primeiro havia notado no conjunto, foram seus pés descalços. Não é à toa, pois eles praticamente gritavam, completamente destoantes do ambiente sujo e pisado por milhares de solas de sapato dos paulistanos usuários daquele transporte coletivo. E ela entrou totalmente indiferente à poeira, à sujeira, aos vermes e às pequenas partículas que porventura pudesse haver ali.
Sentou-se no banco vazio e eu pude notar a mochila de tecido que carregava junto ao corpo: via-se apenas uma caneta Bic e um pedaço de papel num dos bolsos externos. De resto, a mochila recheada e mais nada. Na mão esquerda levava um saco transparente com um edredom fino, desenhado com bichinhos.
Apesar de disfarçar minha curiosidade, procurando não constrangê-la, minha mente seguia hipnotizada pela sua figura, na verdade tentando imaginar a vida daquela provável asceta. Apenas depois notei a etiqueta da companhia aérea anexada à mochila, indicando que ela deveria estar vindo de outro lugar, e que provavelmente aquela mochila e aquele edredom eram todos os seus pertences. Sem sapatos, o volume das bagagens fica mais razoável, pensei...
A moça descalça me comoveu pela sua postura tranquila em meio a tantos olhares fixos em sua figura. O rapaz no banco ao lado somente bem depois percebeu seus pés nus, e assim que os viu cutucou o amigo, apontando para baixo. Risinhos contidos.
E espantou-me imediatamente o contraste da túnica da menina descalça com as roupas das outras jovens mulheres que estavam naquele vagão. Essa moda cruel de blusas cheias de lantejoulas e detalhes brilhantes gigantescos, que ofuscam os olhares sob a luz do sol e sempre me fazem imaginar que elas estão voltando de um desfile de escolas de samba. Saltos altíssimos, estes sim um verdadeiro martírio, vergando colunas vertebrais e rompendo ligamentos. Calças justas e de cós muito baixo revelando saliências produzidas à base de fast food. Blusinhas minúsculas de alcinhas finas descobrindo sutiãs dos mais variados modelos e cores. E bolsas imensas, nas quais o imprescindível do dia-a-dia pode-se transformar, pela oferta de espaço, em um sem número de objetos inúteis e um peso extra a ser carregado com cuidado e medo.
Contrastes. O rosto da menina descalça era sereno, diferentemente dos olhares desconfiados das pessoas ao redor. Ela não aparentava estar sentindo calor com aquela roupa pesada, apesar das vestimentas sumárias de suas companheiras de sexo e idade. Mas seus pés, de solas muito sujas, estes sim pareciam cansados da viagem. Como todas aquelas pessoas dentro daquele vagão, dentro daquela cidade, dentro daquele país...
Ah, se todos os nossos pertences coubessem numa mochila de pano, quem sabe não faríamos uma viagem mais alegre?