Uma bermuda para o cronista

 

Já fui barrado na porta de algumas editoras por estar de bermuda, camiseta e sandálias de couro — mais pela bermuda, na verdade; os outros itens passariam bem com uma calça comprida. Por isso estranhei quando, suspeitoso e cabisbaixo no imenso saguão da Academia Brasileira de Letras, estreando uma bermuda verde-musgo com bolsões laterais na altura das coxas, ninguém se empombou comigo ontem à tarde, e me deixaram entrar numa boa no território sagrado dos imortais. Fui aonde devia ir, sarandei como um louco pelos corredores do oitavo andar em busca de fumódromos que não existiam, peguei o que devia pegar na Editora Rocco, e dei no pé. Melhor para eles, pois não trabalho para quem exige paletó e gravata, ou coisa parecida, de um reles frileiro.

Lembrei-me do nosso malvestido Lima Barreto, de uma autenticidade sofrida e amargurada. “A minha alma é de bandido tímido”, dizia ele, em crônica de 1915, diante do prédio da Biblioteca Nacional, que pouco freqüentava, “sobretudo depois que se mudou para a Avenida e ocupou um palácio americano”. A bronca do genioso mulato procede. Que pobre-diabo dos subúrbios, em busca de instrução e saber, não se sentiria “medroso de entrar” numa dessas “suntuosidades desnecessárias”? Qual era a do Estado, intimidando assim os mais fodidos, já que “a velha biblioteca era (...) mais acessível, mais acolhedora, e não tinha a empáfia da atual”? Porque é verdade que ainda hoje a gente humilde aproxima-se cheia de pés dos grandes templos comerciais do centro da cidade, balbuciando pedidos de informação a contínuos e ascensoristas.

Quanto a mim, não dispenso mais a bermuda. Sob o eterno verão carioca, vou a todo lugar de bermuda, camiseta e sandálias de couro, além da mochila de cinco reais onde carrego livros, frilas, material de escrita e guarda-chuva. Quem não me quiser assim — e acreditem que ainda encontro muita frescura por aí — perde o amigo e o profissional. Eu é que não mudo.

Lima Barreto viajava na primeira classe dos trens suburbanos na maior esculhambação só para irritar os burgueses. Hoje os nossos trens superviários não têm classe alguma, e o cronista não anda esculhambado. Anda é condizente com o clima do Rio de Janeiro, esportivo e animoso como um vira-lata.

 

[28.3.2008]