Desafiando o Álbum
Desafiando o Álbum
Fazia tempo ele estava evitando o álbum. De um lugar para o outro, um teto, graças a Deus, mas nunca o seu, e no meio das sacolas e das malas semi-abertas, tava lá o álbum. Verde, grande, com uns detalhes dourados. O tempo foi passando e essa estranha relação teve um dia de se confrontar. Foi quando ele pegou no álbum. Curiosamente, altas horas de um domingo de Páscoa. Na capa do álbum, inequívoca, a métrica do tempo separada por traço. 2000-2005. E ele começou a folhear. Quem fez o álbum foi ela. Alias, ela também foi quem tirou as fotos. E quem comprou o álbum. E também quem se deu ao trabalho de colocar legenda em cada uma delas. Não que ele precisasse das legendas, pois mesmo de olho fechado ele sabia a história de cada foto, de trás pra frente e com minúcias. Mas carinho é assim, faz bem feito. Então tinha legenda. Como nesse dia a Páscoa caiu em março, ao folhear o álbum as águas de março rolaram dos seu olhos. As crianças montando árvore de natal, na casinha, casinha foi um lugar que eles moraram que eles chamavam de casinha. Aliás tinha muita foto da casinha. Inclusive a de um barquinho em miniatura, cheio de flores, que a caçula insistia em pegar das árvores e colocar no barquinho. As macarronadas de domingo, várias, muita criança, pouco espaço porque a cozinha era pequena e às vezes redundar mal não faz - o amor era grande, fosse naquele incessante movimento de criança querendo isso e aquilo, fosse no meio da bolonhesa e das jarras de suco.
Nesse ponto ele parou, fechou as folhas e deitou na cama. Junto com as águas de março e mais outras tantas fotos que, apesar de não figurarem no álbum, atuavam com vigor naquele instante. Pouco tempo depois levantou, porque homem que é homem não foge à luta e a despeito do formidável dilúvio, o álbum tinha de ser encarado.
E dá-lhe foto. Os passeios pelo bairro, a ida ao WetandWild, ida a São Roque com a caçula fantasiada de coelha, porque era Páscoa, (quem comprou as orelhas foi ela – a que fez o álbum), os restaurantes à beira mar, festa disso e daquilo, um determinado almoço, “agora todo mundo se abraçando“ – dizia ela com a máquina na mão. Sim, os natais, claro. E fotos claras porque os natais são claros. Ou deveriam ser. Mas aqueles foram. Natal desse e daquele ano. Ano novo, só os dois, numa mesa de plástico com garrafa de guaraná e cuscuz, (o cuscuz também saiu na foto), mais os dois, olhando as estrelas da chácara S. Antonio.
Quantas e quantas vezes, nas funções do dia, não saíam os dois, e ela exclamava: tem que comprar filme para a máquina!! Isso quando não exclamava: as fotos ficaram prontas!!
Gozado, pensou ele por um instante, acho que foi semana passada, antes do “desafio”, que essas coisas todas não voltam mais. E precisa ser um gênio para se alcançar tal conclusão... Mas ele ainda não sabia que iria se deparar com o álbum. Até a Páscoa em questão. Justo ele, de fato um astro, executivo de sucesso no Banco de Angra, uma instituição sólida que de repente faliu, e junto com suas esperanças levou todas as suas economias, que no fundo eram a mesma moeda – ele é que não contava, para não alarmar os que nas fotos estavam inclusos.
Mais uma pausa para um cigarro na janela, porque fotos procriam na mente, parece até um download, e então o gênio voltou ao álbum, visto que março ainda não acabou e macho que é macho mata a cobra. Ou álbum.O skate da mais velha. A bicicleta novinha da caçula, ainda com rodinhas, os do meio subindo nas árvores, e o momento foi registrado, ele dormindo na rede, o quarto dos dois, tanta coisa a gente esquece, as páginas terminando, sendo, a última foto, um almoço de Páscoa. A vida prega umas peças.
Estava na hora de se recolher, o álbum voltar para o recôndito e ele arrumar uma toalha para secar as pálpebras.
Dia destes encontro com ela, pensou, e reverencio o gesto.
Porque, verdade seja dita, não fosse ela, não tinha álbum.