Histórias de chuva: NO MILHARAL

“No milharal”

As mulheres todas estão desfiando o milho. As palhas, o cabelo, a espiga, a faca afiada para tirar bem rente os grãos. O sabugo é jogado numa lata enorme que também serve para colocar gelo e cerveja. Aquilo me dá uma certa agonia. Até a elegante avó de mãos finas e sabedoria professoral está lá. A filha recém-separada, e a neta. Todas de saia ou vestido, sentadas de pernas abertas com as palhas no colo. E eu ali hipnotizado.

Não sou muito fã de pamonha. Nem de doce e nem de sal. Mas a tradição com que elas fazem aquilo me encanta. As conversas também. Sou quase um menino, tenho treze anos. Ela, tem nove. Mas sua velocidade de pensamento, seus desatinos, fazem com que eu fique.

O milharal estava enorme. É a safra. De verão. Planta em setembro, no começo das chuvas e depois colhe quase no Natal. Agora mudou o tempo e nem sei se tem a safrinha também, que vem logo depois. Mas ela deitada comigo não sai da minha cabeça.

Estávamos ali, contando nuvens. Meu tio Jorge é piloto, ensinou-me tudo sobre elas. Cumulus, nimbus, cirros, estratos. Eu repasso para minha namoradinha. Mãos dadas. Mais nada. Hoje quando me deito ao ar livre e vejo o céu da madrugada sei quando vai ou não vai chover. Coisas de nadador, e de motoqueiro.

Mas naquele longínquo ano de 77 eu respirava fundo e atormentado pelos meus desejos e pensamentos. Ela conversava sobre o avô, que era enorme, forte, italiano, e suas músicas –imagino árias- matinais. Ela era bem pequenina eu não conseguia imaginar um avô tão alto, mas era.

- Você um dia vai se casar comigo, Henrique.

- Meu nome não é Henrique.

- Mas vai se casar do mesmo jeito. Abaixa o short.

- Como?

- Já falei, abaixa. Mas não é para olhar, só abaixa que eu vou abaixar também.

Eu fiquei meio sem jeito e fiz do jeito que ela pediu. Tentei desconversar, pois a proposta era indecente e irrecusável, mas a imposição do limite, me desarmou. Eu via a inocência pura e ao mesmo tempo a pulsão, o desejo, sei lá o quê, nela.

- Aquela ali em forma de cogumelo de bomba atômica é a CB, vai chover.

- Cogumelo na fazenda é orelha de pau. Não vai não.

Teimosa. Sempre foi. Quando metia uma coisa na cabeça, não tirava. Mesmo que batesse essa cabeça inúmeras vezes. Quase que simultaneamente um pingo enorme caiu na minha testa. E virando-me de lado, vi que um também caiu em sua boca. Linda, por sinal.

- Viu?

- Vi, e daí? Vamos ficar aqui.

Ela apertou com força minha mão do mesmo modo que amarrava as trouxinhas de pamonha. Apertou e apertou. Chovia. Nós imóveis. Virei-me de lado discretamente. Ela sorria de maneira tão bela que quase chorei. Não disse mais nada. A chuva aumentou.

Saímos correndo do milharal para a varanda. Todas juntas, conversa alta que cessou assim que chegamos, obviamente estavam falando de nós. Pensei que na correria as calças ainda estivessem abaixadas. Mas não, ajustou no movimento. Ainda bem.

- Onde vocês estavam?

- No milharal, vendo o céu e a chuva. Disse ela.

- Desse jeito vão pegar uma constipação.

- Estou acostumado com água, nado todo dia, pego não. Disse eu.

Elas riram do menino da cidade. E eu –meio sem graça- ri também. Tinha curau, canjica, milho doce, e até pipoca. Tinha tudo, lá. Ela estrategicamente sentou à minha frente, mas de longe.

Ontem de novo choveu, e logo, logo vai fazer neblina e as cigarras vão sair. É a chuva de prata. Ela não gosta de cigarras, do ciciar delas. Eu provoco, ela tem a língua presa, fala aí:

- A cigarra cicia sempre que as chuvas chamam com meu assovio.

Ela repete. Gracinha. Naquela hora perdida da madrugada, voltou o tempo todinho. Mas hoje eu tenho a espiga, e ela é a pamonha, de doce e sal, que na correria da vida, eu amarrei o mais terno e selvagem possível, para nos fartarmos por todo milharal.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 27/03/2008
Código do texto: T918491
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