O silêncio
Apoiei as mãos na terra, ergui minha vista – ainda tonto – para a frente, e pude ver, no ângulo pequeno que a visão me permitia, chegar o que devia ser o último soldado, que juntou-se então aos outros, os quais santificavam-se em silêncio. O cavaleiro à frente, prontamente pôs-se a pensar (algo que não é de maneira alguma comum, dado ao momento que se passava). Fechou e abriu os olhos algumas vezes, olhou a imensa águia que circulava pelas bandas, e que posteriormente veio a pousar sobre um monte não muito distante; e ficou a observar os fatos. Após alguns minutos (é necessário ressaltar que se passaram em silêncio absoluto) o cavaleiro desmontou do seu cavalo e, ficando em desnível para com os soldados, pôs-se a falar:
Ora, que é a guerra? Brigamos nós porque desejamos ser superior a alguém ou a algo? Ou brigamos em si por algum objetivo? Por algum Deus? Creiam-me, ó bravos lutadores, a vida é uma constante. E é por essa constante que bravamente vós lutais, e não por desejo nenhum que vá além dela. Eu não proponho-vos a imortalidade, pois acredito que ela não exista. O que eu proponho é a eternidade, a eternidade da vida. Cansaram de dizer que eu não tenho objetivos; não ter objetivos, porém, é já lutar por objetivo algum, como diria um grande amigo meu, que não está presente aqui certamente por impossibilidades da própria vida – nosso bem maior.
Antes disso, gostaria de salientar, destarte, que a tontura a que eu passava me fez iludir sobre o que era físico e não físico, e fez-me constantemente pensar na possibilidade do real que se encontrava a minha frente, e por várias vezes eu neguei aquilo como se fosse algo imaginário, mas, por incrível que pareça, era real demais, e não podia ser simplesmente abstraido como um fato costumeiro, ou como algo que se vê sempre no dia-a-dia; nada naquele momento podia ser mais límpido do que o que ali se apresentava (muito menos mais belo).
Se nada tiver significado algum – prosseguiu o cavaleiro - se nada disso puder dar certo, se a fonte de luz não vier a refletir nossos olhos; ou perdermos companheiros aos quais eram essenciais; ou se a terra puder engolir-nos como quem brinca – e não deixe se quer vestígio de grandiosidade nisso. Se não pudermo-nos lembrar de nada que se passa, e aquela águia seja nossa única confidente. Se as margens desse rio viver e morrer nossa história, sem ser contada, sem ser dignificada; ou sem ter mágica alguma; ante a tudo isso, eu peço a vós, ó cavaleiros, sejamos poetas, ainda que filósofos, sejamos poetas. E eu vós prometo: tudo que for vivido aqui vai ser belo, belo como essa eternidade que prometem nunca foi; belo porque palpável; belo porque admirável; belo porque vida.
Nesse exato momento ouve um grito uníssono, de forma que nunca vi tanta agitação assim. Mas não era simples agitação, era algo efusivo em demasia; era algo que, por mais que existam poetas, nunca poderá ser expresso por palavras, porque foi visto e sentido, e nada disso tem tradução. Não me recordo ao certo, mas a sensação que tive foi que justamente o soldado atrasado (a quem a primeira vista parecia estar desinteressado no que ocorria) foi quem primeiramente estourou suas cordas vocais:
Viva o cavaleiro solitário. Viva!
Ainda que eu ache que Valjean deteste essa adoração, ou que não goste de se colocar em público, a reação dele não foi contrária; foi simples (como todas são); foi silêncio, um insigne e imenso, silêncio.