Mãe, sou pichador!

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Ao aplicar a primeira prova de Física para os alunos do colégio onde leciono, fiquei abatido com o resultado: muitas notas baixas, conceitos físicos mal interpretados ou mal compreendidos. Ponderei muito cautelosamente sobre isso. Percebi erros básicos em fundamentos matemáticos. Alguns tópicos, porém, abateram-me mais profundamente: a dificuldade de contextualização, a limitação aparente de jovens imersos num mundo sem leitura, castrados, portanto, de imaginação; amorfos, apáticos, desconexos e desvinculados do ato criador e, mais ainda, com as placas mentais coladas por meio de um mecânico ato reprodutor e decodificador da língua.

Preocupado, embora consciente da dificuldade de interpretação do nosso alunado que, muitas vezes, não consegue solucionar um problema de Física por falta da compreensão, de entendimento daquilo que lê; propus-lhes uma redação – tema livre – para complementar a nota parcial da disciplina. Os títulos saíram os mais variados: Minha vida, A maconha, A cara do Brasil, Sexo, Um dia acontece, Meu primeiro zero, Educação... O “Pixador”.

Esse último título – tema e título se confundem num instante – mexeu comigo. Meu lado amigo, irmão e colega foram tocados. Como educador, acredito na eficiência das diversas “máscaras” com as quais trabalhamos na abordagem dos nossos alunos. Elas são úteis quando queremos compreendê-los, cativá-los e conquistá-los como pessoas.

Darei breves pinceladas do texto escrito pelo aluno, podendo, inclusive, tirar-lhe a beleza. Mostrarei, abalado, linhas coloridas da vida em branco e preto dos largados no lar:

Certa noite, um menino saiu para jogar bola numa praça perto da casa onde mora. Enquanto caminhava, distraído, introspectivo e imaginativo, observou um grupo de garotos, amigos dele, atravessando uma das avenidas do bairro. Acompanhou-os com um olhar furtivo. Flagrou-os “pixando” muros. Permaneceu alguns instantes assim, parado, envolto no mágico mundo das cores flutuantes dos rabiscos desconexos de adolescentes rebeldes e livres naquele momento.

Deixou-os. Continuou seu itinerário. Foi até a praça. Bateu sua bolinha. Voltou para casa. Retornou cansado. Descarregara suas angústias no futebol. Estava aliviado.

Em casa, em vez de segurança, de harmonia, é recebido com brigas: a mãe, o padrasto e o irmão brigam. Ele observa. Pára. Pensa. Quer ausentar-se, mas não consegue. É alvo das reclamações agora. Todos se voltam contra ele. O que se passa, meu Deus? Não fiz nada. Não sei por que discutem. Pensa tristonho, envergonhado. Por que brigam tanto? Odeio isso. Morro de vergonha quando chego e... a vizinhança percebe... meus amigos ficam curtindo comigo... Vou fazê-los sentir a mesma vergonha que me consome.

Vai para o quarto. Quer vingança. Adormece.

Amanhece o dia. Nova aurora. Nova esperança. Vida nova.

– Mãe?

– O que é!?

– Quero cinco reais para comprar uma bola.

A mãe quase não dá o dinheiro, mas acaba cedendo. O menino, irresoluto, sai apressado. Compra um “spray”.

À tardinha, no mesmo horário do dia anterior, procura os amigos. Pergunta se pode acompanhá-los na pichação:

– Eu tenho um tubo de “spray”. Posso ir?

– Claro – responderam satisfeitos.

O garoto picha a primeira vez. Realiza-se. Os companheiros afagam-no, estimulando-o a novas peripécias.

O ideal único e o objetivo comum conquistam-no. Agora é um pichador convicto, de bandeirinha e tudo. Novas peraltices, novos muros, novas aventuras...

Durante umas das pichações, o menino, agora com o pseudônimo de Ventura, foi flagrado por uma viatura da Polícia Civil que o apreendeu, levando-o à mãe que o recebeu sob os olhares curiosos da vizinhança em festa. “O filho da Quirina, você viu? Chegou de viatura...” Bons vizinhos, solidários...

Ventura, o pichador, ficou alguns dias trancado em casa. Proibiram-no de sair, pensando que resolveriam o problema. Que nada. Isso apenas intensificou a revolta, a raiva do menino.

Hoje em dia, ele ainda descarrega suas revoltas nos muros das casas existentes nas proximidades de onde mora.

– Professor?

– Pois não.

– Tem um aluno querendo falar com o senhor.

– Deixe-o entrar.

– Com licença, professor!

– Tudo bem, rapaz? Sente-se. Podemos conversar?

– Tá. Podemos sim.

– Adorei sua redação. De onde surgiu a inspiração?

– Da minha vida. É assim que eu me sinto. É assim que reclamo, que grito para chamar a atenção. O senhor vai me punir? Vai mostrar minha redação ao diretor?

– Não. A partir de hoje quero apenas fazer parte das suas pichações.

– O senhor!?

– Sim. Vamos aprender juntos a colorir os muros da imaginação? Vamos colorir a vida com a beleza do conhecimento?... E aí, topa? Você tem facilidade para escrever, rapaz. Quer me auxiliar no laboratório de Física? Nos intervalos, a gente aproveita e escreve sobre qualquer coisa. Quem sabe você apresenta tudo isso algum dia para alguém avaliar.

– O senhor me ajuda?

– Claro.

Fortaleza – Ce, 22 de março de 1999.

Do meu livro 'Crônicas e mais um conto'.