Biografia de Marques
Marques era do tipo empático. Manteiga, como os colegas da copiadora gozavam, divertindo-se dele – quando não era a bichinha da agapê nova, que essa história de ficar com peninha e tititi sei não, dizia o Moacir. Via uma criança passando fome e chorava. Via um pai de família sem trabalho e se doía por ele. Entristecia-se por ver trabalhadores sobrevivendo porcamente e os porcos vivendo do trabalhador. Você viu que morreram quinze no Pará, numa fazenda? Aposto que era trabalho escravo. Era tudo muito injusto, era mesmo, e o máximo que ele poderia fazer era ser empático, embora não soubesse o que isso significasse.
Marques tomava o ônibus todos os dias pela manhã às seis e meia. Antes, tomava um copo de leite, roubava uma ou duas bolachas do pacote, às vezes uma banana, e andava a passos largos para o ponto. O ônibus ia sempre cheio de pessoas sonolentas e ele ia observando cada uma delas. Havia uma mestiça que vestia uniforme de uma clínica de estética, um homem de bigode ralo bastante castigado nos seus quarenta ou sessenta anos, o motorista obeso, uma negra gorda que saía pelas baianas do Porto da Pedra, e tantos outros coadjuvantes em que Marques conseguia enxergar o brilho fosco nos olhos. Iam de ônibus ou mesmo a pé trabalhar pra quem vai ao trabalho de carro. Por quê? Não eram os mesmos olhos, senão pela desolação? As mesmas mãos, senão pelos calos? O mesmo Deus, senão pelo destino?
Vinte e cinco minutos sacolejados, descia na frente da copiadora onde trabalhava das sete às dezesseis. O dia na copiadora passava rápido. Era pouca gente pra muito trabalho, muito barulho e pouco papo, muito tempo na frente dos feixes de luz pra muito pensar. Marques pensava que não entendia por que é que uns tinham e outros não. Pensava muito nisso. Porque uns viviam e uns sobreviviam (como ouviu uma vez) e porque outros morriam? – ele acrescentou na frase. O Manoel que trabalhava logo ao lado com os xeroques da Matriz perdera mês passado um filho de oito anos que aguardava um transplante de rim. O casebre dele, Manoel, encheu da parentada que veio de Niterói pro velório em casa. O moleque era bem mirradinho, o caixãozinho ficou menor que a mesa. O Manoel ganhou uma semana de folga da empresa.
Marques chegava na casa abandonada todo dia às cinco e pouquinho. Colocava na Malhação com o volume no último e ia tomar banho, pra depois fazer janta. Se tinha uma coisa que a falecida mãezinha sabia fazer era cozinhar – meu Deus, como cozinhava bem! Marques herdou da dona Maria os dotes para cozinha, para salgados, os vinis que eram do pai que falecera anos antes e a tevê catorze polegadas da Malhação.
No amigo secreto do final de ano passado, o Jurandir, do Financeiro, tinha dado um livro pra ele. A capa era amarela, bonita, o livro devia ter custado bem caro. Mas ele não lia, ficava tonto logo, não conseguia se concentrar. E não via jornal sempre, era muita matança. Então, acabado o feijão, ia pro boteco do Bira jogar bilhar, quando tinha dinheiro. Só não bebia, perdeu o pai disso.
Se não tinha dinheiro, deitava cedo e ficava triste, triste, em geral chorava. Não que gostasse tanto de bilhar.