Matar é da natureza humana
MATAR É DA NATUREZA HUMANA
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 26.03.2008)
- Veja só se não existe interesse escuso nessa história - Ela fala numa voz que é puro desalento, um desgosto profundo pela condição humana, isto é, pela pusilanimidade das pessoas que não assumem seus deveres, praticamente suas tarefas irrecusáveis pelo fato de viverem em sociedade. - Todo sábado de Aleluia, um sujeito lá em Belo Horizonte, de nome Paulo Paixão, promove a malhação do Judas.
- Paulo Paixão é um bom nome de personagem para uma história de ficção sobre a Semana Santa - Ele arrisca uma piadinha mesmo sabendo que Ela detesta gracinhas.
- Paulo Paixão existe, é um comerciante mineiro - Ela empresta à voz um tom ainda mais cortante do que o habitual - e há 39 anos reúne dez mil pessoas na véspera da Páscoa para a queima do Judas. Cada ano ele "elege" uma figura manjada que merece o castigo.
- Não li essa parte do jornal - Ele responde, - mas não percebo onde está o...
- O ato suspeito reside no fato de que, este ano, ele não conseguiu apoio para a festa - incisiva, Ela aborta o discurso que Ele iniciava - justamente quando o escolhido para encarnar o Judas foi esse tal de Lula (que Deus me perdoe por falar o nome), lá de Brasília.
- Sim, claro - Ele resolve adotar uma postura mais condescendente com Ela, - deve haver, tem de haver alguma coisa muito séria por trás disso, não se pode imaginar aí uma simples coincidência. O problema é que espancar um boneco de pano é muito pouco...
- Veja se alguém faz isso, por exemplo, nos Estados Unidos. Bush não se deixa servir de Judas para ninguém - Ela fita um ponto perdido no espaço. - Pelo contrário: ele sai na frente e bate antes, não fica esperando o inimigo encostar nele. É um sujeito decidido, que sabe muito bem o que precisa ser feito. E ainda leva a briga para longe de casa.
- Se fosse ele aqui, já teria invadido a Bolívia há muito tempo, submetido a Venezuela, enquadrado a Colômbia e colocado o Equador na linha. - Ele desfia para Ela a geografia sul-americana: - Não toleraria que o Paraguai sequer pensasse em ganhar mais dinheiro ainda com a energia de Itaipu e Argentina, Chile, Peru e Uruguai estariam sob mira preventiva.
- Como ele mesmo diz, aliás: a morte de milhares de jovens americanos no Iraque se justifica plenamente pela defesa da ideologia, do estilo de vida e do conforto do seu próprio povo, e pela imposição da democracia e da liberdade entre os iraquianos - Ela tem os olhos brilhantes, quase sonhadores. - Aquele é um líder de verdade! A História irá consagrá-lo!
- Aqui, vergonhosamente, o Lula cede nossos interesses e ainda sai-se com tapinhas nas costas e elogios aos atrevidos que nos peitam - Ele parece indignado. - Resultado: qualquer um faz o que bem entende com ele e conosco, com o Brasil e com o povo brasileiro.
- Bush conseguiu dois feitos extraordinários - Ela enumera: - o Congresso lhe transferiu, a um único homem, a prerrogativa dos parlamentares de decidir com exclusividade sobre declarações de guerra e sobre as armas a empregar, inclusive aquelas de natureza atômica e nuclear, e o Presidente bancou corajosamente, às claras, a lei que permite a tortura de terroristas, pois a defesa da Pátria sobrepõe-se a quaisquer outras considerações.
- Lembro muito bem das palavras do General, seu ilustre pai (que Deus o tenha e guarde) - recorda-se Ele: - "terrorista bom é terrorista que não fala, pois assim se legitima o uso dos métodos infalíveis para obter informações, ensinados nas escolas militares dos EUA; depois de confessar, coitado, o elemento acaba morrendo". Mas isto é natural, óbvio.
(Amilcar Neves é escritor e autor, juntamente com Francisco José Pereira, do livro "O Tempo de Eduardo Dias – Tragédia em 4 tempos", teatro, Editora Garapuvu, Florianópolis, 2005.)