Depois não reclame!
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As pessoas têm uma horrível mania de sentir ciúmes de tudo: das roupas, dos utensílios domésticos, das amizades, dos apetrechos de escritório, das realizações, dos livros... De tudo mesmo. É como se o que possuíssem, o que estimassem, o que produzissem sempre servissem para elas apenas e para mais ninguém.
Até certo ponto, isso é correto: veneram e gostam das coisas que se lhes estão próximas, que construíram ou que compraram a duras penas.
“Se não cuidar daquilo que gosto, quem cuidará?”, certamente defenderia, ou melhor, defende, agora, mesmo que inconscientemente, você que me tolera nesta leitura. Tolerância e sabedoria são palavras belas retoricamente.
Se não cuidamos daquilo de que gostamos, quem cuidará? Retorno a pergunta para você. Posso? Entretanto, perguntaria anteriormente:
O que leva alguém a gostar ou a desamar determinadas coisas? O que leva alguém a gostar ou a detestar a leitura, por exemplo?
Lembro, agora, de uma criancinha, hoje adolescente que, nos primeiros crepúsculos, nos primeiros lampejos do tato infantil, buscou, nos livros maternos, momentos de prazer e de contentamento. A criancinha, resplandecente e bela, sorvia o cheiro ímpar e inebriante de todos os livros que encontrava. Ácaros, mofo, alergia... que nada! Adorava! Queria “comê-los”, “abraçá-los” fortemente, “degustá-los”, “senti-los”. Desejava-os tanto que os deixava aos pedaços a cada novo encontro num amor leviano e pueril. A mãe, claro, recriminou-lhe as atitudes “insensatas”:
– Menina! O que é isso!? Você tá maluca! Onde já se viu! Rasgar meu livro! Parecia que falava a um adulto. – Você não percebeu isso, homem!? Não se pode mais deixar nada solto nesta casa! Tenho que trancar tudo senão essa menina rasga!
Que desabafo de mãe incauta. Que refratário crime cometera. Privar uma criança do cultivo e da fertilização embrionária de um amor duradouro!
Hoje, aquela criancinha é uma adolescente que odeia livros. Leitura? Somente as obrigatórias. Tornou-se alérgica. Qualquer livro novo ou velho provoca-lhe espirros e ojeriza.
A mãe ainda hoje reclama:
– Menina, vá estudar! Não vejo você pegar num livro! Ah, meu Deus! O que eu faço?
“Cuide daquilo que você ama como se fosse apenas seu” – responderia um sábio retórico.
Não! Verdadeiramente não! Deixe que suas criancinhas brinquem com os livros; deixe-as amarrotá-los, senti-los na intimidade. Desta forma, cuidarão daquilo que amam.
Minha pequena Loah adora brincar com meus exemplares. Livro novo, então, é uma festa: ela cheira, amassa... “É o bê-á-bá, papai, é?” – diz sorridente. “Ela não vai rasgar não, tá ceto? Ela vai só olhar, viu?”.
– E os meus livros?...
– Depois não reclame!
Fortaleza – Ce, 08 de março de 1999.
Do meu livro 'Crônicas e mais um conto'.