A bicicletinha

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Até bem perto dos seus dois anos, a pequena Loah era vítima, quase que diariamente, dos empurrões de criancinhas maiores que ela e tudo por causa de uma bicicletinha que uma das suas primas fazia questão de andar justamente quando desciam juntas para passear com as mães.

Apanhava mesmo. Choramingava, esperneava, xingava e pedia sempre:

– Eu quelo uma biquetinha, ora mais! Eu quelo!

Aquilo me cortava o coração.

Veio o Natal e com ele um pretexto para a tão sonhada bicicletinha. O presente de Papai Noel, porém não veio.

Foi difícil a reação de ambas: mãe e filha descontentes, problemas à vista. Se eu cometia um deslize, a mãe me cobrava:

– Deixe de ser ruim, homem. Dê a bicicleta à menina!

– Pra quê! Para perguntarem quem deu, e ela dizer que foi o Papai Noel?

– O que é que tem? Faz parte da pureza da infância.

– E de oportunismo comercial! Por acaso, você já ouviu uma historinha verídica que o meu pai costuma narrar?

– Não.

– Vou contar para você: o papai, quando criança, esperava todos os anos receber um presente do tal Papai Noel. Ouvia as pessoas falando que Papai Noel havia deixado um presente em cada uma das casas dos filhos dos grandes expoentes da localidade: dos comerciantes, dos advogados, dos médicos, dos engenheiros. Ele ouvia essas estórias e ficava esperando o seu presente. Nada. Certa vez, já maiorzinho, chegou a rasgar uma das poucas meias que o meu avô possuía e ficou, à espreita, na ânsia de receber o tão sonhado presente – qualquer um o confortaria. Nada. Hoje isso é motivo de uma das frustrações do meu pai que foi enganado em sua inocência de criança. Deveriam ter-lhe dito que papai Noel existe para aqueles que podem comprar presentes, mas não disseram. Simplesmente o ludibriaram, cultivando fantasias no seu coração verdadeiro e humilde.

– Isso foi no passado. Hoje as crianças não se iludem mais.

– Você é que pensa.

– Eu vou comprar uma bicicletinha pra ela, tá ouvindo? Não é você quem fica agüentando piadinha das pessoas; não é você quem vê quando ela apanha das outras crianças.

– No próximo mês, você compra.

– Por que não agora? As bicicletas estão em promoção; estão custando...

– No próximo mês – falei interrompendo.

De nada adiantaram minhas argumentações. No dia seguinte, a mãe aparece com a tão sonhada bicicletinha.

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– Olha o presente que a mamãe trouxe!

– Eita pau! A minha biquetinha! Mamãe: você tá tão bonita, mamãe! Ora mais, como você tá bonita, meu Deuso do céu! Vamo andar na biquetinha, vamo? Eu deixo tu empurrar, tá ceto?

– Tá certo, bebezinho.

Resolvem descer. Passeiam realizadas. Do sobrado, eu apenas as observo. A mãe, toda faceira, empurra a filha que, entregue às primeiras pedaladas, é pura felicidade e realização.

– De quem é esta bicicletinha tão linda? perguntam os “curiosos”.

– É minha. Sai. Só eu que ando, responde a pequena triunfante.

– Quem te deu?

– Foi a mamãe.

Ouvindo essas últimas palavras, confesso que me senti aliviado. Temia ouvir que recebera o presente do bom velhinho. Ainda bem que foi a mamãe quem comprou a bicicletinha. Ainda bem!

Fortaleza – Ce, 06 de março de 1999.

Do meu livro 'Crônicas e mais um conto'.