Do perfume nascem lendas

Naquele tempo chegava e logo sentava com os pés no sofá, mas de banho tomado, enfiado no roupão felpudo, para ligar a televisão e assistir ao grande espetáculo da alegria. Isso foi assim. Hoje mudou. Ponto. Com.

Atualizando. Em casa com os pés dobrados diante do computador procurava buscar algum assunto que distraísse. Mesmo em alta velocidade. Quando não tenho nada para fazer invento uma lenda. Já há alguns dias andava com a idéia na cabeça. Chegando novamente em casa e colocando os pés sobre a banqueta, desfiz o nó da gravata e comecei a escrever o que vinha na telha. No começo o doutor Moraes Mascarenhas foi terapêutico, porque os médicos disseram que o cérebro ocioso, débil, navega virtualmente na maionese das grandes leituras quando necessita de aproveitamento. Aquilo era uma patada. Desmoronava o meu sentido épico de leitor aguçado grandalhão atento às vastas visões claras do mundo. Resultado: um barnabé em casa com os pés no sofá sem grande clareza. Sem receio alcancei a mesa da cozinha e gritei para espanto geral: Do perfume nascem lendas! Vivam sem uma lenda e tenham uma noite vazia e sem sonhos!

Quem haveria de contrariar? Depois a idade e os amolecimentos das molas da razão, como disseram.

Hoje senti aquela vontade de rabiscar a tal lenda. Se a vontade não passar chamarei o médico como aconselharam. Melhor seria a praia. Ali escutamos mulheres belas e malucas contando histórias preciosas como à origem das conchas marinhas. Houve um tempo em que a terra era vista de longe como o brilho de estrela. Cada ser purificado resguardava o ser abstrato na evolução do tempo. Somente assim e com essas palavras acabei cuspindo a palavra "alma" sem jeito, caída de tão alto mundo, vindo parar na terra. Com todos os diabos a narrativa era seca e por pouco não pulariam monstros e ogros, além de criaturas délficas para dentro dela. Quis a lenda ser boa como à rapadura da cabana do Zé Pereira. Boa porque fica no dente, ninguém liga e puxa. A alma dizem que fica, depois sai.

Depois de cometer a maluquice da redação reli e tresli o esboço do mito. Que raios verter ilusões para através delas alcançar tamanha satisfação! Estava claro que o texto era ruim, descorado, sem força. Pouco importava. Gostava da idéia divertida para arquitetar afinal a lenda. Tê-la como disparate aos sobrinhos? Mas quando surgia ocultava o fato. Não temer nenhuma delas consistia no único caminho da fraternidade, aceitá-las como normais. Ser simples e mortal como todos no final das contas. Valia bem mais a pena contra a intransigência. Na lista dos conselhos extraordinários anotaria mais essa: Caso não tenha nada para fazer, invente uma lenda.