Os camaleões e o muro
 
Há algum tempo, em nossas caminhadas matinais pela lagoa da Jansen, venho observando, na diversidade das vidas que ali se exibem e desenvolvem, alguns camaleões que costumam ficar sobre um muro mal cuidado que dá para um terreno baldio, onde brotam chananas amarelas, em qualquer estação.  
O muro, de média altura e tijolos aparentes, delimita um terreno edificado, cuja frente dá para a Rua das Andirobas, no bairro Renascença. O terreno baldio dá para a pista de Cooper e para a pista de bike; dá para o manguezal que margeia a lagoa, naquelas imediações; dá para a paisagem mais verde e bela da lagoa, que é bela pelo espelho de águas serenas, pelo mangue que emerge das águas, em ilhas de folhas, de sombras e verdes, onde garças, marrecas, jaçanãs, se abrigam e acasalam, enchendo de sons as manhãs alvorecidas. 
A lagoa dá para o verde que a margeia, em toda a sua extensão. Dá para o dia que amanhece, com todos os bem-te-vis que ali cantam. Dá para o verde que floresce em cada um de nós que ali caminhamos, independente do odor que dela se desprende, em algumas épocas, bem mais distante dali, do outro lado, já perto da Ponta D’areia.
No entanto, indiferentes ao dia que amanhece naquele espaço ou à manhã que alvorece em nós que os vemos e, ali, caminhamos, os camaleões se deixam ficar sobre o muro desprezado, como parte da paisagem daquele cenário, quase sempre no mesmo espaço, e nas mesmas posições.
Não passam de quatro, quando mais se exibem. Na maioria das vezes, são apenas três. Mas conseguem, mesmo sendo tão poucos, marcar as horas do dia e chamar a atenção dos que ali passamos, olhando, em torno de nós, o que há de forma e cor na paisagem que nos cerca.
Vendo de onde os vemos, numa distância não maior que quinze metros, parecem uma família. O maior, o mais robusto, tem rabo longo, tem crina alta, tem papo grande, a cabeça ornada de símbolos. O segundo maior não tem a opulência do primeiro, não tem a mesma robustez, nem tão acentuados sinais de espécie, como crina, papo, rabo. A ao vê-los, assim, de onde os vemos, parecem macho e fêmea, na tarefa de se reconhecerem, a cada dia, para decidirem se acasalar, para repetirem o acasalamento, para, simplesmente, se enternecerem à luz da manhã.
Por isso, se postam um diante do outro, a pouca distância, e ficam, quase estáticos, olhos nos olhos, numa troca de mensagens simbólicas, de energias que se enlaçam e os tornam muito verdes, sob um sol muito claro e uma manhã muito morna, ainda. Assim, ficam, por muito tempo, por quase uma hora, talvez brincando de estátua, para ver quem primeiro se move, sabendo que aquele que primeiro se move é o perdedor.
Quando não caminhamos, conto o tempo de uma hora pelas quatro voltas de bicicleta que fazemos, completando o circuito de nosso condicionamento físico, em torno da lagoa, meu amor e eu.
Os camaleões menores, quando são dois, ficam bem mais distantes dos dois adultos, quase dispersos, como se fossem estranhos àquela relação, àquele quadro, àquele cenário que compõem. Mas eles, os menores, como filhotes que parecem ser, talvez observem, de longe, para sentir, para aprender os jogos de sedução que há entre machos e fêmeas, para saberem praticar na época de procriação.
Mas, se ainda não for isso, talvez estejam no aprendizado de viver com seus próprios esforços, buscando alimentos sem o auxílio, caçando nas imediações as presas possíveis a seus imaturos recursos. Tudo isso, sem a vigilância, sem a atenção dos pais que, em extremo magnetismo, vão se deixando ficar em contemplação, em atração absoluta, criando condições para multiplicação da vida, para a reprodução da espécie que representam, no estreito espaço de um muro mal cuidado.
Meses atrás, um camaleão macho, talvez o mesmo que vem chamando minha atenção em cima do muro, agora, era o mais destacado e exótico visitante de uma árvore, de copa muito vasta e viçosa, não muito distante do muro mal cuidado. Mas do lado oposto, margeando as águas da lagoa. Ficava ele, ali, no seu mimetismo, exuberante, curvando galhos com seu peso, tão verde e tonalizado como as próprias folhas da árvore que lhe servia de abrigo ou palco. Muitas vezes, meus olhos não conseguiam distingui-lo entre as folhas, tal era a perfeição de sua camuflagem, para fugir ao risco que nossa presença humana trazia para sua segurança de camaleão.
Os camaleões que se deixam ficar sobre o muro, talvez por se sentirem mais seguros, não parecem necessitar da camuflagem para estarem ali, em plena manhã alvorecida. No entanto, talvez a usem, em menor intensidade, apenas para se seduzirem mutuamente ou, ainda, para o macho seduzir a fêmea, mostrando seus encantos, sua beleza cromática.
Muitas pessoas, a exemplo dos camaleões do muro mal cuidado, se deixam ficar sobre muros, na tentativa de atrair, de seduzir pessoas, de esconder propósitos, de não assumir posições que consideram inoportunas, de não mostrar, claramente, suas idéias, suas convicções, seus propósitos. Muitas pessoas, como os camaleões, usam seu mimetismo social, que tanto pode ser a roupa, quanto pode ser a mudez e a fala, o recolhimento ou os gestos, para enfrentarem dificuldades, para passarem em brancas nuvens, para não serem notados, para poderem se defender, para poderem atacar. Enquanto caminhamos, os camaleões do muro mal cuidado se enternecem ou se preparam para acasalar. E a vida vai oferecendo lições de viver, nas cenas que protagonizam na manhã alvorecida. Amar a cidade é aprender com a natureza as lições da vida.     
Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 24/03/2008
Código do texto: T915212
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