A SEMANA SANTA PAGÃ
Nesses dias feriados, sem muita coisa pra fazer, como a maioria das pessoas, penso eu, acabei fazendo o de sempre. Ora, se a rotina mata, destrói, e por vício acomoda, posso dizer que não dei nenhum passo em nenhuma direção e sobrevivi. Assim, entre vinhos garibaldinos e bacalhoadas à Gomes de Sá, encontrei espaço para observar o cotidiano à volta. Alguma coisa estava faltando; não sabia bem o que era pois não era nada de agora, concreto, palpável. Não demorei muito a entender: era alguma coisa imaterial, intocável. Estava no ar ou nos sentidos. Estava lá, na memória perpétua; era o espírito da coisa. O espírito da Semana Santa e da Páscoa. Afora essas comidas e essas bebidas que, para a maioria das pessoas, só vão à mesa nessa época do ano; não para mim, entretanto, que as saboreio em qualquer dia por tradição, hábito cultural original; e afora a paralisação de tudo, exceto, como sempre nessas datas, as “praças de alimentação dos shoppings centers, postos de combustíveis e outros serviços”, ninguém diria que esses dias feriados são sagrados para grande parte da humanidade. Há uma festa pagã sendo celebrada, nas residências, nos restaurantes, nas praias e nas estradas. Essa data em nada mais lembra seu significado religioso. Maior expressão do cristianismo, em todas as suas confissões, deveria servir para recordar a desastrosa semana que Jesus permaneceu na judaica Jerusalém de 2 mil anos atrás sob o domínio romano. Digo desastrosa porque penso que se Jesus não tivesse, ofendido a elite e contrariado seus interesses, blasfemado contra a fé comum, e feito aquela alaúza no Templo, nem teria sido notado; a cidade de pouco mais de 50 mil habitantes estava abarrotada por mais do dobro de pessoas vindas de todas as partes da região. E até de judeus helenizados de Cirene, uma colônia grega na ilha de Tira onde hoje é a Líbia. Entre eles um homem chamado Simão, que por acaso carregou a cruz de Jesus, conforme Marcos, pois, como todos, estava na cidade para comemorar o pessach. Sobre esse evento, João, que também escreveu essa história, só que um século depois, não se refere ao episódio, afirmando que Jesus carregou a cruz sozinho até o Gólgota. Mesmo não sendo cristão – livrei-me desse fardo em tempo, como se livrou dele Drummond - admiro quem verdadeiramente é. Os que acreditam nos textos escritos 80/100 anos após a brutal morte, pela crucificação, daquele homem que se disse filho de Deus, e que tudo aconteceu porque estava escrito. Isso é fé.
A celebração dessa fé, todavia, está cada vez mais distante da ritualística religiosa em vários aspectos. Sou do tempo em que se estudava Latim, tanto quanto, Matemática, Português, Francês, Inglês, entre Canto Orfeônico, Trabalhos Manuais e outras sem nenhuma importância mais, nos primeiros 6 anos das escolas primárias. Estudava-se e aprendia-se para sempre; inesquecível. Nas missas da Igreja Católica, como bom coroinha que fui, para a alegria de minha mão – e acho que de todas as outras mães, a ver-se por seus rostos cobertos com uma espessa cama de sorrisos e de admiração – auxiliava o sacerdote da celebração feita em Latim com desenvoltura, pois sabia o significado das palavras.”Dominus vobiscum”, dizia o sacerdote. “Et cum spiritus tuum”, respondia e tocava a estridente sineta dourada. Na Semana Santa, agitava a matraca; de madeira, de som irritante, sem graça. As imagens dos santos, todas cobertas com tecido roxo davam um aspecto lúgubre, fúnebre a uma igreja brilhando pela iluminação mágica do sol que atravessava os vitrais coloridos. O clima, contudo, era de consternação. Em casa, nem se varia o chão, nem se ouvia rádio, que era o que se ouvia, nem se corria, nem se podia ser aquilo que éramos todos os outros dias do ano. Naquela semana éramos todos sofredores consternados e com a alma dolorida pelas lembranças do que se aprendia e que apenas a fé tornava realidade.
De acordo com as classificações acadêmicas, a Idade Moderna começa com os turcos tomando Constantinopla, e vai até o final da Revolução Francesa. Há controvérsias. Não importa. De onde for o início, final do século XV pra cá, vivemos na Idade Moderna; de l789 até há menos de uma década se estendeu a Era Contemporânea. Entramos no século XXI sem nome e não imagino quando essa época vai terminar e como deverá ser classificada. Porém, a modernidade que vivemos de umas poucas décadas para cá, talvez só uma meia dúzia, tem transformado a sociedade numa velocidade que me deixa tonto. O que era sucesso ontem – ontem mesmo – hoje já não é mais; o upgrade do hardware faz o que é novinho, envelhecer a toque de caixa e o software, atualiza-se por conta própria. Acho bom que a farmácia entregue remédios a qualquer hora e que a pizza chegue ainda quentinha e cheirando a tomate seco e a orégano, depois de alguns minutos do pedido. Basta ligar e os telefones já não dão mais sinal de ocupado – exceção: empresas de telefone, de internete banda larga, de cartões de crédito e outras mais, além de todos os “disque denuncia”; nunca funcionam. Talvez por serem as chamadas de graça ou porque seus atendentes só falam no gerúndio.
Modernidade pode ser a qualidade do que é moderno, mas não significa necessariamente ser bom, como muita gente pensa. É portanto, na prática, porém, um estado de ausência; de valor, de usos, de hábitos, de costumes não mais presentes. Foi isso que senti nesses dias feriados. Antes da modernidade o homem não tinha escolha. Sua vida era uma seqüência natural; pouco ou nada era possível alterar durante séculos. No cotidiano, no dia-a-dia das pessoas. Morava-se no mesmo lugar para sempre, vestia-se as mesmas roupas, comia-se a mesma comida e acreditava-se e professava-se a mesma fé de uma única doutrina. Seguiam-se paradigmas pensados imutáveis. O homem era um ser coletivo até há pouco; há algumas décadas, apenas. Como os períodos históricos não acontecem em espaços divididos com a precisão que os registros oficiais acadêmicos determinam, em alguns momentos desses espaços estamos sendo testemunhas e igualmente atores desse processo. E vivemos um dilema: com saudade da prática e da vivência do que já passou usufruímos hoje com satisfação o que temos a disposição sem limites. Podemos escolher que passos dar e em qual direção, pois são muitos os caminhos a percorrer. Podemos decidir sobre tudo, sobre que teorias aceitar, que doutrinas seguir, no que fazer, em quem e quando acreditar. Por isso, penso, essa ausência de coletivo deixa uma vazio prático e individual; um espaço sem medida entre as praticas de hoje sobre as mesmas questões de ontem. Esse homem individual, pode escolher sua fé e sua crença e como praticá-las. Sejam políticas, filosóficas ou religiosas. Esse homem individual está em permanente reelaboração de si próprio tendo como objetivo, não mais o coletivo, mas ele mesmo. O individuo, o ser único e incomparável que já fez todas as perguntas e obteve todas as respostas. Talvez na próxima classificação histórica, depois dessa atual, essa época contemporânea que rompe com os ideais racionalistas e que busca os “saberes regionais”, se possa perceber que jamais haverá uma resposta definitiva para absolutamente tudo porque é assim que devemos viver, sempre em busca, sempre reelaborando e relativizando. Negando o caráter absoluto da fé, da crença. Entretanto, ainda e para sempre, mantendo, por temor, o paradoxo da necessidade de depositar as incapacidades e as incompetências em algo, ou alguém, melhor e mais poderoso do que o próprio homem. Assim sendo, se todas as premissas de tudo o que refleti até aqui são verdadeiras, as conclusões também deverão ser, uma dedução nada moderna como se pode perceber.
Por certo,hoje, o clima da Semana Santa é outro; o espírito da coisa mudou; não para todos, também é certo, nem em todos os lugares. Lá nas grotas, e pra quem é lá de fora, esse individualismo não vigora. Ainda não chegou por inteiro e lá se pode experimentar todas as antigas manifestações e os rituais da Semana Santa coletiva. Com alguns reparos e adaptações, é verdade. Porém ainda muito respeitosos e, sobre tudo, bastante sinceros.