MENINO FAZ CADA COISA!

Eu devia ter sete ou oito anos. Gostava muito de passar naquela mangueira, atrás do açude dos porcos. Eram as mangas mais doces. Além de doces eram cheirosas. Talvez por isso a chamassem de jasmim.
Naquela tarde, eu vira algo diferente na baixa de arroz, próximo à mangueira. Havia pequenas represas, feitas na revência, dentro da baixa do arrozal. Achei-as parecidas com açudes de brincadeira. Eram pequenos. Apropriados para mim. Eu só brincava com meu carrinho de lata. Quem os teria feito? Acocorei-me atrás de um deles. De repente, o instinto: arrombar. Como era bonito o galão d’água descendo!. A correnteza tombava os pés de arroz. Legal! Aquilo me fascinava, me entretinha. Após o arrombamento o açudinho ficava seco. Avistei outros na vazante acima. Fui arrombando e me deleitando. A correnteza, com força, subia ao meio de minhas canelas. Finalmente cheguei ao tronco da mangueira. Deixei meu rastro pequeno, por onde passei.

Quantas mangas! Aprendera a olhar a manga madura, apertando-a. Até hoje, não sei porque, daquela vez, eu fui apertando e furando, uma a uma. Furei várias mangas com minha unha grande do polegar da mão direita. Estavam quase de vez. Seu leite viscoso descia, pingava. Furei todas que alcancei, em volta dos galhos de toda copa da mangueira. Olhava para trás e via o gotejar das mangas, a chorar. Que inocência! Daria prá pensar que era maldade? Daria.
Voltei para casa. Estava escurecendo. A bruma escura chegava rápidamente.  Não dava prá ver nem as galinhas no poleiro. Até o terreiro estava preto. Nem para brincar de pega-pega daria certo. Talvez furasse os pés nas pedras do oitão. Fui deitar.
Meu pai era muito calado e pensativo, mas ouvi sua voz. Nunca o vira assim tão zangado. Ele gritava e rosnava:
- Oh Arnaud!! Arnaud? Ele conheceu os rastros de meus pés.
Eu tentei entrar de rede a dentro. Ah quem me dera encontrar um labirinto. Debalde. Encontrou-me enroladinho na rede. Arrancou-me dali violentamente. Já vinha com uma corda na mão.
- Quem mandou você desmanchar o serviço que fiz lá na vazante? Hein? E as mangas jasmin, quem mandou você furar? Eu gaguejava, atrapalhava-me.
- Olhe, seu cabrito, você vai apanhar, prá nunca mais fazer aquilo! Não consigo mais reproduzir toda a cena. Mas lembro da cara de raiva de meu pai. Lembro ainda que saíam estrelas de fogo de meus olhos. Muitas, em turbilhão, em cada cordada que recebia. Foram muitas. Meu corpo pequeno estremecia. Ele segurava um de meus braços e com o outro batia com aquela corda áspera. Eu gritava e ele grunhia. Rodamos como carrapetas. Depois, provavelmente, fui sacudido. Estava moído, ardido.

Todos estavam em silêncio. Quase não consegui dormir. Engoli soluços e gemi baixinho. De madrugada ainda sentia meu espinhaço ardendo em contato com a rede branca. Vi de manhã manchas avermelhadas no local da rede onde dormira.

Interessante, não fiquei com raiva de meu pai. Compreendi que, sem intenção, cometera uma brincadeira, ou melhor, uma travessura muito grande. Não havia compreendido a importância dele fazer pequenos baldos para aguar o arrozal. Também não pensei no zelo que ele tivera com aquelas mangas. Eu Só queria brincar.

Estas marcas foram pregadas na tábua da minha memória, com pregos grandes. Certamente foram batidas a martelo e tiveram as pontas viradas. Nunca mais saíram da minha mente.

Hoje, lembro com saudade. Menino faz cada coisa!