Pensamentos em um semáfaro
Ouço uma música ao longe. Nesse momento a música não é agradável. É uma música qualquer. O som continua e me convida para lhe dar atenção... reluto, mas é em vão. Viro para o lado e vejo o relógio digital do despertador, são 8 horas, o rádio já despertou e anuncia que a sexta-feira chegou para mim.
Fico mais 5 minutos na cama e a consciência começa a me dizer: Levanta! Hoje sua agenda está cheia!
Levanto devagar, abro a sacada do meu quarto, olho o tempo e penso: vou vestir uma jaqueta hoje. Engraçado, já estamos em meados de novembro e o verão ainda não chegou, mas como gosto do frio, não me importo com o atraso do calor.
Vou ao banheiro, tomo um banho rápido, escovo os dentes, me visto, vou até a cozinha e preparo uma xícara de café com leite. Saio e vou até a garagem, próximo ao gramado. Enquanto tomo o café quente, tento sentir o dia que se apresenta para mim. Volto, fecho a casa, pego o carro e vou ao trabalho.
Tudo normal, mais um dia normal, as pessoas normais, o trânsito normal, os “ares” normais. Vou pensando em meu primeiro compromisso, que é logo mais, às 9 horas, um encontro para planejar questões financeiras, após esse encontro, outras reuniões, atendimentos, e-mails, telefonemas, projetos, etc.
Num determinado instante, quando paro com o carro na sinaleira, percebo uma movimentação estranha bem ao meu lado. Vejo o carro do corpo de bombeiros, uma mulher, aparentemente simples, deitada no banco da praça. Noto que um bombeiro está fazendo massagem cardíaca naquela senhora. Provavelmente uma parada cardíaca ou algo do gênero. Não sei por que, mas nesse momento sou tocado por um estranho sentimento e meu pensamento voa...
Imagino que aquela senhora é uma Dona de Casa, simples e acolhedora. Ela me parece ter um enorme “coração de mãe”. Provavelmente teria marido e filhos e os encontraria, logo mais, na hora do almoço. Talvez tivesse se deslocado para o centro da cidade para comprar algum produto para o almoço, ou para pagar as contas do mês, ou então, quem sabe ela estaria aproveitando a sexta-feira para adiantar as tarefas, visto que teria um final de semana com feriadão, e assim, poderia ficar um tempo maior na companhia dos filhos e do marido.
Imaginei que, até aquele momento, em seu lar, todos estariam certos que neste dia teriam o familiar almoço, preparado como já há muitos anos por aquelas singelas mãos. Talvez ela já tivesse até mesmo adiantado algumas coisas, como descongelar a carne e cortar alguns temperos. Bem, logo mais a noite ela assistiria televisão com seu marido, talvez faria um passeio e logo depois tomaria seu lugar no leito, junto ao marido.
Ironia do destino. Ao mesmo tempo que esse filme me passava pela memória eu via os gestos firmes e insistentes do bombeiro fazendo a massagem cardíaca. Ele estava convidando aquela senhora a voltar para a vida, mas seu esforço parecia inútil, o convite era em vão. Ele continuava com os movimentos, mas a expressão da senhora era de que estava partindo para uma viagem, a maior de todas as viagens. Aquele estava sendo o momento da partida e o cenário era o banco da praça rodeado de pessoas. As árvores balançavam com um leve vento e alguns passarinhos continuavam a cantarolar.
O almoço em sua casa não seria mais servido por ela, o tempero e a carne já preparados seriam utilizados por outra pessoa. O lugar no sofá e na cama junto ao marido ficariam vazios por algum tempo. Aquela senhora estava partindo. Sua missão já havia se realizado. Percebi em seu rosto uma expressão de profunda paz. Agora ela não era mais aquele corpo. Sua dimensão transpassava a matéria. Ela passava a ser luz. Com certeza, todo o amor e carinho semeados e compartilhados nesta existência, neste momento, somavam mais pontos do que tudo o que ela possuía. Muitas pessoas sentiriam sua falta, mas, mais tarde compreenderiam que a morte faz parte da vida.
Neste momento, abre o sinal, o verde indica que devo prosseguir, engato a 1ª marcha no carro e continuo em direção ao meu trabalho.