Vasculhando a oficina
Visitas à casa materna, domingo de Páscoa. Encontro meu irmão vasculhando a oficina de meu pai, um espaço outrora cheio de curiosidades e hoje um adendo empoeirado, entulhado de quinquilharias inúteis e com cupins comendo tudo. Meu irmão tentava consertar um armário que ameaçava cair, e com a inteligência prática de um engenheiro e a destreza geneticamente adquirida como bom filho de peixe, num instante serrou um toco de madeira na diagonal, fazendo duas cunhas que apoiaram o móvel nas laterais junto ao chão de forma a torná-lo novamente seguro.
Olhamos todas as prateleiras carcomidas por anos de umidade e pó, admiramos (sem tocar, como se estivéssemos num museu) as inúmeras ferramentas, apetrechos, máquinas e motores ali expostos. Observamos, entre divertidos e emocionados, os vários potes de vidro com parafusos de todos os tipos e tamanhos guardados separadamente, além de outras peças que, de acordo com a sábia observação de meu irmão, em outra época tiveram um propósito, uma serventia. E que um dia, concluiu, precisarão ter um outro destino.
A oficina sempre havia sido um mundo de ferramentas e peças dispostas de uma forma aparentemente caótica – era assim apenas a quem vinha de fora, pois para nosso pai tudo era absolutamente organizado. Forasteiros (nem sempre bem vindos, graças ao ciúme que ele tinha de seus tesouros) nunca conseguiam encontrar nada – ele, ao contrário, sempre encontrava tudo, e sabia exatamente tudo o que possuía. Às vezes o tempo entre a procura e o encontro era longo, mas quase nunca a busca era em vão.
Meu irmão, mais velho que eu, viveu muito de perto aquele mundo. Acompanhou meu pai em várias empreitadas, auxiliou-o na confecção de muitas peças, aventurou-se sozinho no uso de ferramentas e máquinas. Saiu de lá (ou ali já havia entrado) com a vocação definida, e tornou-se, como o pai, hábil e engenhoso – pois a inteligência e a curiosidade haviam sido naturalmente herdadas. A diferença básica é que lhe foi dada a oportunidade de sistematizar essas habilidades, tornando-se engenheiro numa conceituada universidade. Perguntei a ele o que teria sido de nós dois caso nossa ascendência tivesse sido diferente, caso não tivéssemos crescido próximos àquele universo à parte... Ele me garantiu que teríamos sido diferentes. E com sabedoria, observou que tudo aquilo era na verdade um mundo de possibilidades, muitas opções desordenadamente dispostas.
Consegui ver, nessa observação, tudo o que jamais havia logrado: entendi porque meu irmão era aparentemente tão centrado e positivo em sua vida, e como sempre conseguiu tomar suas decisões com serenidade e sem traumas. Ele havia entrado de forma ativa naquele mundo, sabia achar os parafusos que precisava no pote correto, sabia em que gaveta estava o martelo ou o alicate, e assim aprendeu facilmente a definir se, num determinado cruzamento, deveria ir para a esquerda ou para a direita...
Já para mim, cujo olhar sempre foi o da forasteira, a oficina se mostra um cenário perfeitamente coordenado ao modo como me sinto hoje: confusa, desorientada, perdida entre tantas opções desorganizadas em meu cérebro, como parafusos de vários tipos e tamanhos misturados todos em um único grande pote.