Até que a morte os separe
Jorge foi acordado às seis e meia como todo dia, com um empurrão bem dado pela bunda da esposa. Acabara o sonho impublicável onde Fernanda pedia Jorge em casamento. A esposa que só começava a trabalhar bem mais tarde, bancária, dormia até às oito, oito e meia.
Mas não foi como sempre. Antes de vê-lo sair, bastante desperta, Maria alertou:
- Jorge, tenha um bom dia. E se cuida, tá? Tenha força pra dizer sim. – E dito isso virou pro lado. A mesma bunda que deu bom-dia dava agora boa-noite.
É bem verdade que o casamento não andava tudo aquilo. Não andava nada, pra falar a verdade. Ganhar menos que a esposa deixava Jorge um tanto frustrado. Os quilinhos que ela ganhara do Natal pra cá, então, eram de morrer. Enjoou do tempero, cansou daqueles anjinhos que reinavam sobre o raque da sala, daquela mania de esconder naftalina pela casa. Pensou em mudar de ares, tirar umas férias só ele, mas só pensou. E quantas vezes não pensou em fazer as malas e sair de casa? Ah, se tivesse dinheiro, destino e coragem!
É bem verdade que o casamento não andava tudo aquilo. É bem verdade também que ele sonhava quietinho, só pra ele, que se a Fernanda do RH que dava aquelas olhadinhas indiscretas um dia fizesse algo mais que olhar, ele não olhava pra trás. Até casar de novo casava. Ainda mais com a Fernanda, que tinha lá seus trinta e seis anos, era morena clara, olhos muito expressivos, voz estridente, comportamento efusivo e uma quedinha pelo Jorge que era conhecida de todos. Jorge, por sua vez, não tinha filhos, não tinha dinheiro, só tinha o lado direito da cama e um gol mil quadrado..
Mas ainda que o casamento não estivesse uma brastempe e Jorge sonhasse com o dia em que Fernanda o pusesse na parede, seria irônico demais que justamente Maria recomendasse a ele que reunisse forças para aceitar o convite de matrimônio e se entregasse a uma louca paixão de novela que Jorge já vivia em conjecturas repetidas. Que será que Maria quis dizer?
Quando deu dez e meia, Jorge admitiu pra si mesmo meio a contragosto que se Fernanda quisesse mesmo, de verdade convidá-lo para esposá-la já teria feito, que essas coisas não se deixam pra depois. Felicidade não se adia, pensava ele. Ligou pra Maria:
- Oi, amor. Tudo bem? Aqui também. Hei, o que você quis me dizer de manhã quando eu saí?
- Pra você fechar a porta? É que eu tenho medo, Jorge. Você que não pensa direito nas coisas, eu que me preocupo com tudo. A vizinha do 402, a ruiva, sabe? Na terça passada, no dia da crisma da filha do Miguel lá da loja da mãe, entraram e levaram computador, tevê, som, de um tudo.
- Não, amor. Você falou que era pra eu ter força pra dizer sim. Lembra?
- Quem disse isso?
- Você, amor. Você disse.
- Quem disse que eu disse? – Maria já estava irritada. É que o Jorge tinha essa mania, sabe, de jogar verde pra colher maduro. Ela já estava esperta com ele.
- Eu estou dizendo, Maria. Você disse. Não estou louco, eu ouvi. – Jorge se enfezou um pouco, que Maria andava com essa, negava na maior cara de pau o quer que fosse. Outro dia desses apodreceram três mamões que ela diz não saber de onde veio. Mas Jorge sabia. Mamão não sobe escada e pára na fruteira por conta.
- Nem eu estou louca, Jorge. Era só isso que você queria? Porque se for, eu tenho cheque pra compensar aqui. Só isso mesmo? Então tchau. – Desligou. Não tinha cheque coisa nenhuma. Jorge bem sabia que na terça-feira não tem malote.
Ainda tamborilava o tampo da mesa com a mão no queixo, olhando absorto pro crachá do Durval, quando toca o telefone:
- Ferreira Lopes Construtora, Jorge, bom-dia!
- Jorge? Sou eu. – Era Maria.
- Oi Maria, diga.
- Jorge, eu acho que lembro que disse alguma coisa.
- Que você tinha cheques pra compensar, né? Deve estar corrido aí. Aqui também está. Precisa...
- Não, Jorge. – Maria o interrompeu, mesmo sabendo que Jorge odiava isso. Tratou de continuar antes que ele reclamasse. – Estou falando que lembro de ter te falado alguma coisa de manhã, na cama.
- Ah... esquece isso, tá, Maria? À noite nós conversamos melhor.
- Não, Jorge. Eu lembrei, falei isso mesmo pra você: pra você ter força pra dizer sim. Mas porque disse isso, disso não lembro.
Silêncio. Jorge sabia que era Maria quem o romperia.
- Jorge, você me desculpa?
- Esquece isso, Maria. À noite nos falamos melhor.
- Por favor, Jorge. Não gosto de te ver assim. Ainda vai ficar nervoso e vai atacar a gastrite. Daí eu que te agüento reclamar. Me desculpa.
- Você que vai ver, o Antônio te pega pendurada no telefone cheeeeeia de cheques pra despachar – risinhos contidos de ambos os lados da linha – e te chama na chincha.
- O Antônio não tem muita moral pra cobrar nada por aqui, bem. Aquela história do dinheiro que sumiu, que te falei. Estão achando que é ele.
- Não duvido, Maria. Ele nunca me soou muito íntegro, eu já te falei. Você me chama de cismado, mas eu sou é intuitivo. Bato o olho e sei se o cara é malandro. Sei porque sei.
A conversa assumiu caráter muito mais informal. Graças à Deus, pensaram ao mesmo tempo.
- Você tá me enrolando. Me desculpa, Jorge?
- Vou pensar, Maria. – Jorge divertia-se da aflição de Maria, mas ela relevava. Até gostava.
- Me desculpa, Jorge! Que diacho!
- Tá bom, mulher! SIIIIM, pronto. Eu desculpo. Satisfeita?
Desligaram, ambos muito satisfeitos. Sorte da Fernanda que não saiu do RH, porque hoje ia voltar pra lá solteira.