Zula boa
Zula era filha de Catarina Aparecida dos Santos, a preta da vida, da casa dos Paulino. Nem ficou muito maior e já herdou da mãe a função de doméstica (ou quase isso: vivia numa pecinha nos fundos do quintal).
Diferentemente da mãe que se deitava bem viva com o finado patrão e morreu aos gemidos numa noite muito clara de lua muito cheia, Zula era bem quietinha, tristonha. Discreta como gostavam os Paulino. Dentro da cozinha Zula não falava, fora da cozinha não se via Zula. Não falava por nada, só respondia o que perguntavam: hoje vai ter isso, isso e isso. Só assim. Mas cantava. Cantava baixinho, cantava o tempo todo, pra cima e pra baixo. Era um sussurro, uma ladainha que acompanhava Zula sempre.
E assim viveu Zula. Aprendeu a escrever o suficiente pra ir à feira e ler as letras de música que decorava de partituras velhas que havia na casa. Aprendeu a cozinhar de tudo, de tudo mesmo. Ah, que delícia era a mão de Zula! Também aprendeu a cantar para si. Era autodidata, a Zula, mas não sabia. E aprendeu a rezar. Zula era fervorosa, até benzia criança de quebranto. Quando não cantava, rezava. Parava com a ladainha a noite e pedia em voz baixinha, baixinha para que Deus fizesse o melhor, com medo de pedir para descansar, que bem podia ser pecado.
Num final de semana, outro Paulino tropeçou em Zula. A preta então parou de cantar para dizer em voz de veludo e olho pro chão: desculpa, seu Osmarzim. Osmarzim que veio passar uns três, quatro dias com os pais, ficou olhando pro chão: que é que Zula tinha? Viu que ela cantarolava mais cabisbaixa que o normal uma quadrinha quadradinha. Enfim, ouviu Zula e atentou para o cântico da preta, um sambinha áspero da Clementina, que entoava qualquer coisa assim:
– Ôôô, ôôô. Ôôô, liberdade Senhor!
Na hora do jantar, Osmar fez gesto interrompendo o irmão que se servia sem modos. E chamou bem alto:
– Vem, Zula, vem comer com a gente na mesa.
Zula não entendeu nada lá da cozinha. Deus do Céu, foi eu que chamaram? Pra mesa? Os Paulino muito menos. Mas que diabos é isso, é essa faculdade que tá mexendo com os miolos dele Osvaldo, é aquela gente de São Paulo, você tem que falar com ele, passa muito tempo com aquela gente, depois Carmem, depois, agora não, Osvaldo, toma tento, daqui a pouco esse moleque você bem sabe, e se tem visita quero ver como é que fica tua cara, se tem visita ele não chama, calma Carmem, ela também não é bicho, deixa ela vir, que mal tem.
Zula veio com medo. Obediente, sentou à mesa imóvel. Não sabia usar aquele tanto de garfo, faca, copo. Zula preta, Zula boa, cantou Osmar pra si mesmo. Zula comia de colher, nem sei comer com isso tudo, que que eu faço? Ainda de cabeça baixo, pediu:
- Licença, seu Osmarzim.
O silêncio foi geral. Osmar acenou aos pais com os olhos. E sustentando os olhos na mãe perturbada (que mal tem, oras, que mal tem), esclareceu:
- Toda, Zula. Você é da casa.