Ontofagia

(Eu nem sei como classificar isto, então vai crônica mesmo!)

Ser me é insuportável. Sou e sou somente eu. Tento prender o inaudível nas palavras como se ele pudesse ser preso em alguma coisa. Mas ele está. Quando leio o que escrevo eu o vejo tão clarissimamente...

Não o transformo em matéria. A coisa está em mim, sei que está e não sei Onde. Na palavra não. A palavra por si só não contém nada. Rabiscos toscos praticamente ilegíveis e que eu os entendo muito bem na folha branca e profunda.

A matéria? Nem que devorassem inteiro iriam sentir minha matéria. O sangue sim escorre e explode em erupções vulcânicas juntamente com meus ossos quebrados.

Onde? Há muito se diz que é no coração. E livros e filmes e lágrimas foram feitos em homenagem a esse órgão vermelho. Essa bomba. É certo que sinto um Algo no meu coração. Perto. Nem vem! Se me tirassem o coração e colocassem uma máquina de plástico eu seria o mesmo. E já me tiraram, substituíram-no sem me avisar, sem eu querer. Eu sei a cicatriz. Eu sei o tic-tac, a bateria, a energia elétrica. Eu sei. O falso coração não está. Eu estou. Só eu posso morrer e estou morto.

Tic-tac, tic-tac, tic-tac, tic-tac.....

…Bip-bip-bip!

Hora de acordar e renascer fênix das cinzas brancas. É hora. A chegada hora que não é hora é modo de dizer Agora.

A hora depende do relógio. Não tenho relógio e vivo perdido no tempo sem ter tempo algum pois não preciso dele. O tempo é inútil se tenho o Agora. Jogo fora as horas como jogar amarelinhas se tenho o Agora.

Do branco ao Agora. Ao Amarelo.

O interior do sol é branco. Nunca se viu e eu sei. Lá explodem átomos calmos e quentes que a medida que se exteriorizam, ficam amarelos! Calor que vem e sinto amarelo, a cor mais que ver. Fechar os olhos e sentir o sol de manhã surgindo.

Onde é Onde?

Esse calor de onde é que me intriga.

Será que sou uma estrela?

Sem brilho.

E o outro também?

Já cheguei a sentir e desconfio dos meus sentidos porque foi o relâmpago no longe horizonte e poderia ter sido um relâmpago qualquer. Ou uma miragem que criei, uma imagem da imaginação que pega nos mais insignificantes movimentos a Coisa. Ultravaloriza. E joga em cima de mim o que já estava e não me dava conta. Coisa leve, de leveza perturbadora que desaba sem mais nem menos e me deixa imóvel.

Morto.

Quando não-estou morto. Escrevo, tento voltar. Por isso. Por mim. Devoro a mim mesmo para voltar e consigo. Aqui estou, não me como com a boca e sim com as palavras. Elas saltam e arrancam pedaços de mim. E assim, pedaço por pedaço, elas formam um eu desordenado que sou eu mesmo a própria desordem. Uma língua partida, um dedo partido, um órgão sexual partido; um cérebro podre...

Em partes estou aqui exigindo do mais sensível Outro que monte o quebra-cabeça. Mas não tem todas as peças, está incompleto! Por isso sou exigente. O que está me faltando depende do Outro ter capacidade de adivinhar. Mostro minha mão, digo, meu dedo arrancado e tem de adivinhar o que tenho em minhas mãos fechadas. Se acertar te dou uma surpresa, ou você que se dê uma surpresa e me deixe em paz. É o meu vazio que te interessa, o buraco a ser preenchido com um Algo.

Não. Não me venha dizer que me completa e eu te completo. Que cada um complete a si mesmo. Se já não o é e se esqueceu de que também é feito de peças diáfanas, não só de peças duras e rígidas. A semelhança pára por aqui, o mesmo sentimento de que Algo se perdeu. E continua...

Perdi-me. Deixo-me ser devorado pelas palavras para ver se me acho no que restou de mim.

O espelho me é invisível. Não vejo, não me reconheço. Só me vejo enquanto escrevo, escrevo me sendo ao mesmo tempo. Mostro-me o que me falta e me sinto. Será que falta? Não está em mim esquecido a tantas eras que me é estranho? Tão clarinho, claríssimo... branco. A passagem do Branco ao Amarelo é que é a grande dúvida. Tenho que passar pela estrada pedregosa de obstáculos escuros. O medo. Sempre o medo. O necessário Pensamento de sobrevivência.

Mas quem disse que quero sobreviver? Sobreviver é negar a vida não-vivendo em estado vegetativo. Não o dos vegetais que são vivíssimos. Desculpe, mas o estado humanitivo de querer a saúde perfeita ,a vida eterna num sempre nunca de uma pupa produzindo seda inútil sem jamais desenvolver-se e ter asas. O que é o tecido produzido? É morto. É não ter sido e ser morto. E me envolvo com o tecido bem fechado só esperando angustiado.

“Não me mate. Não me mate”. E acabo morrendo sucessivas vezes. Há oportunidades em que tenho asas já na pupa. E, antes de me matar, já não estou. Fujo e tenho meu momento de glória como qualquer um tem. Mal acabo de escapar e já estou com o ter-sido envolvido sobre meu corpo.

Ter sido-morto. Ter sido-morto. Já vivo. Ter sido-morto........

Assim segue minha existência. Sobrevida na maior parte do tempo e Supervida em algum momento. Quando? Pois é... O quando é que surge, não cabe a mim responder o porquê das coisas. Vá na enciclopédia procurar e achará. O que me importa é o Acontecimento e o que fica no Onde.

Acabei de ouvir, o relógio me falou que o tempo passa e o estou perdendo. Agora não. Agora eu perdi o tempo e não quero saber se ele está passando. Agora ele está passando por mim e não o percebo acenando insistentemente as mãos e gritando em minha direção chamando meu nome. Que nome? Não sou um nome nem tenho ouvidos. Sei a presença do quinto elemento que é o Éter, a quintessência das coisas que chega ao Onde.

Minhas pálpebras pesam. Vejo demais e isto atrapalha todos os outros sentidos. O fim dessa humana sina será ser um grande olho? É o que parece. A redução da visão no outro. Humanos evoluídos em camerazinhas captando ao redor o quê? Câmeras captado câmeras, o Grande Outro, O Grande Olho...

Estão pesando, estão fechando. Até o olho, cansado, agradece. Não agüenta tanta sobrecarga sendo o principal órgão sensitivo pois sua função original não é essa . Ele apenas capta e fica por isso mesmo. Cabe ao Onde manter o Agora calmo e fazê-lo pousar de leve no Éter. Folíolo que cai graciosamente no lago criando ondinhas na superfície aquosa. A água estremece toda num gozo dionisíaco.

Água Viva!