Tributo de amor ao Parque

Este tributo foi lido no Café Ecológico da Associação Amigos do Parque Nacional de Brasília, no dia 23 de setembro de 1994, em frente à entrada principal do Parque Nacional, um dia após ter sido controlado o maior incêndio já verificado na história da Unidade, que atingiu cerca de 80% da sua área. Após a leitura, feita por Humberto Pellizzaro, seu autor e testemunha dos fatos relatados, os presentes fizeram um minuto de silêncio em homenagem ao Parque. (Gustavo Souto Maior)

Quarta-feira. Com o Parque fechado, saí pela manhã para uma caminhada. Coisas do destino: mal pus os pés na rua, um veículo do IBAMA passa veloz e pára adiante. Fui ver, era o Erasmo, que havia me avistado. Imediatamente, perguntei pelo Parque. A situação era dramática. Mais de dez focos de incêndio se expandiam. Olhando na direção do Parque, enormes rolos de fumaça subiam. Rápido, ele seguiu de volta e eu retornei à caminhada.

Ao iniciar mais um dia de trabalho, não conseguia me concentrar. O nosso querido Parque não me saía da cabeça. Tomei uma decisão rápida. Vesti macacão, calcei botas, tomei a bicicleta e voei para lá. Na sede, mais de cem bombeiros aguardavam por alguém que os guiasse pelas estradas até os locais onde havia fogo. Primeira missão que me foi confiada: levá-los até as cabeceiras do Tortinho e do Três Barras. Lá fomos nós, ao encontro de mais quatro funcionários do Parque que já estavam há dias por lá -dia e noite. No caminho, a tropa cantava em coro para levantar o moral, preparando-se para a luta. De certa forma, seria uma guerra. Nossas armas: abafadores, galhos de árvores, enxadas, pás, machados e muita, muita vontade. Ao chegarmos ao "front", paramos estarrecidos. Do alto do caminhão dos bombeiros, vimos uma linha de fogo de quilômetros seguindo na direção da Represa de Santa Maria. Outra subia a Chapada da Contagem, onde estávamos. As matas dos córregos do Tortinho e do Três Barras em chamas. Ordens rápidas, tropa em formação, lá fomos nós aos berros, como desesperados. Foram horas de ansiedade, batendo abafadores e galhos, derrubando tocos e virando a terra, correndo para todos os lados. E conseguimos extinguir todos os incêndios.

A noite já caia, iamos embora quando vimos decepcionados que o fogo voltara na mata. Macacos fogem aos gritos, um casal de guarás passa bem perto. Os pássaros em revoada se misturam à fuligem no ar, recusando a se afastarem até o último momento. Devem ter ninhos. Cobras saem de vários lugares, fugindo não se sabe para onde. Curiangos chocam-se com os carros e com as pessoas, como em um suicídio coletivo. Dentro da mata, as cenas mais impressionantes. Árvores imensas, como não existem nas piscinas do parque, em chamas. Algumas já caídas, com as raízes para o alto, como dedos suplicando clemência. Outras morriam de pé, com o tronco transformado em braseiro de cima a baixo. Um jatobá imenso, cujo tronco só se abraça com três adultos de mãos dadas, assiste a tudo impassível. Galhos em chamas despencam do alto e incendeiam os cabelos de um companheiro. Nos encontramos com gritos, mas os animais tambem gritam e logo ninguém sabe mais quem está gritando, se gente ou bicho... Após um tempo indefinido de luta, conseguimos vencer as chamas. Veio um vento fortíssimo, uivando entre as árvores e derrubando várias delas.

De repente, tudo ficou quieto, os animais se calaram e nós também, o vento parou e um único ruído se ouviu - o regato, correndo cristalino entre as pedras, se fez lembrar. Respeitosamente, fomos em silêncio até a sua margem, numa pequena cachoeira. Cansados, aquela visão nos revigorou. Maravilhados, entendemos que a natureza agredida, mais uma vez se dava aos seus filhos. O amor de uma mãe é muito grande. Como será então o amor da Mãe de todas as mães? Nem conseguimos compreender a sua dimensão. Somos muito pequenos, mas nos sentimos naqueles instantes como gigantes, com tanto amor nos invadindo. Cena estranha. Emocionados, alguns choraram desconcertados e ninguém riu. As árvores imponentes nos fitavam e fomos embora em silêncio. Uma nos ofereceu o seu fruto meio carbonizado, que aqui trago - um jatobá. Por último visitamos um olho d'água, onde antes existia a vegetação e agora tudo jazia carbonizado no chão. Mesmo o mais rude dos homens se emocionou. Abaixamos e bebemos daquela água puríssima, e aqui no cantil trouxe um pouco dela. Brotando no meio das cinzas, nos pareceu a esperança que brota dos nossos corações.

A vida se renova sempre. A natureza é simplesmente feliz, o que também deveríamos ser. Precisamos nos encontrar. Hoje nesse encontro, homenageamos o Parque Nacional de Brasília - a Ägua Mineral. Pedimos uns instantes de silêncio para, numa declaração muda, oferecermos o nosso amor verdadeiro. E nosso tributo à árvore, pois estamos na sua semana.

Brasília, em 23 de setembro de 1994

Humberto DF
Enviado por Humberto DF em 27/12/2005
Código do texto: T91059