O Aleijado da Igreja São José
Ao mudarmos de Corinto, sertão de Minas, para Belo Horizonte, fiquei embasbacado com a cidade grande. Tanto movimento, tanta gente apressada, parece que o tempo ali andava diferente. Fomos morar primeiro em uma casa na Lagoinha e depois em um apartamento no centro, como era o desejo da minha mãe, que adorava a vida urbana. Lá perto de casa havia a maior igreja da cidade, a Igreja São José. Seu tamanho me assustava. No caminho de casa, logo nos primeiros dias, chamou-me a atenção um mendigo que ficava sentado ao pé do muro do terreno da igreja. Era negro, calculo que tinha uns 50 anos. Coluna ereta, o dia inteiro, no mesmo lugar, não saía para nada, debaixo de sol ou de chuva. Parecia um iogue. Não possuia nenhuma das duas pernas e deslocava-se penosamente, arrastando-se no chão ao final do dia para ir embora, não sei como nem para onde. Tinha um olhar bondoso, nobre e ao mesmo tempo suplicante. Me impressionava. Toda vez que passávamos, ele me seguia com o mesmo olhar. Minha mãe percebeu a minha preocupação e um certo dia me deu uma esmola para colocar em seu chapéu, o que fiz com certo temor. Ele agradeceu, aparentemente, com umas palavras ininteligíveis. Dali em diante, sempre que passávamos, minha mãe tinha uns trocados para ele.
Certa vez, decidiu em uma data qualquer, Páscoa, Natal, não sei bem, presenteá-lo com um bôlo. Daí em diante ele ousou mais e às vezes tocava as minhas mãos em agradecimento. Me impressionou o tamanho das suas mãos e como eram ásperas. Seu agradecimento era com as mesmas palavras, que eu jamais entendi. Nunca soube seu nome, nem a sua origem, nem a sua história. Alguns anos se passaram, até que nos mudamos para Brasília. Então, antes de partir, fomos nos despedir dele. Parece que nos entendia, mas não nós a ele. Anualmente, nas férias, íamos para B.H. rever parentes e "descansar" de Brasília.
E o mendigo continuava no mesmo lugar. Alegrava-se em nos rever. Mas a idade já o deixara com marcas profundas. Mais alguns anos, em uma determinada ida a B.H., não o vimos mais. Nunca mais. Aquele lugar parecia mais vazio do que nunca. A sua ausência deixou um buraco no muro e dentro do meu coração. Era assim que eu sentia. Posso lembrar perfeitamente das suas feições. Se algum dia o ver novamente, em outros planos da existência, o reconhecerei imediatamente. Isso já tem mais de 40 anos passados, mas nunca o esqueci. Por que há pessoas que nasceram para sofrer ? Como o mundo desde cedo me pareceu tão ingrato e desigual com algumas pessoas. Essas questões eu levava aos meus pais e aos meus professores, mas ninguém jamais me deu uma explicação satisfatória. Afinal, parece que muito poucas pessoas se preocupavam com isso de verdade.
Brasília, 23 de março de 2005