CATARSE - Giselle Sato

Andei pelas ruas quase desertas ouvindo os sons das casas. Vozes de crianças e cheiro de comida. Domingo.

Imaginei as famílias reunidas na sala, assistindo programa de auditório na TV . O almoço típico, macarronada e frango assado. E sobremesa, pudim de leite ou pavê de biscoito maisena. Todos no sofá fazendo a digestão e rindo das piadas idiotas do apresentador. Família.

Mas nada disso me importou, eu caminhei chorando, a cara inchada e os pés doendo. Queria guardar cada ladeira na memória, a raiva me dava forças para continuar. Dispensei o ônibus para perder as forças e o ódio andando por mais de 2 horas no calor infernal. Autopunição. Catarse, ou simplesmente uma escorpiana maluca?

Minha mãe abriu o portão mas nada perguntou, entrei batendo os saltos e desabei no chão do meu quarto. Imersa em dor, os olhos secos, todo meu corpo doía da caminhada insana, as roupas molhadas de suor. Exausta perdi as forças e os sentidos.

Um bicho, acuado, marcado, excluído, era assim que eu me senti. Apaixonada demais por um homem que não teve coragem de vir falar comigo quando bati a sua porta. Havia outra com ele, uma mulher que ele mal conhecia e foi mais importante.

O sexo era intenso, ilimitado e despudorado. Cúmplices, companheiros, amigos e parceiros. Era amor que nos mantinha juntos, abraçados em nosso mundo de faz de conta fazendo planos de partilhar a vida inteira. O depois do amor que só quem já foi muito amado reconhece. O instante mágico onde o silêncio é partilhado e compreendido.

Eu gritei o nome dele na calçada,perdi as contas de quantas vezes gritei aquele nome. Não me importei com a família ou vizinhos. Estraguei o almoço dominical dos familiares, fiz vergonha mas não me envergonhei. Nunca me arrependi . Eu simplesmente me joguei de cabeça, depois juntei os cacos.

Ele ficou parado na minha frente, sem dizer nada, o olhar perdido em algum ponto distante.

Fui até o fundo do poço. Não me importei com os comentários, piadas, nada além dos meus sentimentos. Daquilo que eu trazia no peito e sangrava. Morri naquele olhar de piedade.

No dia seguinte ele me procurou mas eu não quis ouvir, nem ver, nem perdoar ou esquecer. Ele também estava morto.

Havia morrido no instante exato em parti, em cada passo que caminhei, no suor que escorreu do meu rosto. Transpirei aquele amor e liberei as toxinas que me mantinham escrava, meus poros exalaram o que ele havia deixado em mim.

Esmaguei os sonhos e desejos nas pedrinhas da rua, jurei nunca mais falar o nome, ouvir a voz ou saber notícias. Excluí os amigos comuns, mudei o número do telefone, pintei o cabelo, conheci outros homens e não olhei para trás.

Vinte anos depois nos encontramos. Sempre soube que um dia nos encontraríamos, só não sabia qual seria minha reação.

A vida não nos poupou as lições. As mágoas e culpas eram tão pesadas que sentimos que somente juntos conseguiríamos libertar as dores e tristezas. O amor precisava entrar novamente em nossas vidas, nem que fosse fraterno e inocente, em forma de perdão ou amizade.

O mundo deu muitas voltas, o tempo levou a raiva, o rancor, levou a paixão, trouxe carinho e respeito . Hoje sinto o ar fresco da madrugada trazendo o perfume da dama da noite, minha flor preferida, perfume doce e apaixonante.

Cheiro de amores perdidos e por tantos anos o odor que senti a cada noite de lembranças negadas. Estou em paz. Estamos em paz. Alguma ligação muito forte nos uniu, quase destruiu e hoje nos mantêm próximos sem nunca nos tocar.

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 18/03/2008
Reeditado em 20/04/2008
Código do texto: T906501
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