O miojo nosso de cada dia
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Nos meus vinte e muitos anos de existência, já tive a oportunidade de vivenciar diversos modismos: passei pela geração dos “caras-pintadas”, geração dos “teens”, geração “shopping center”, geração “topic” e outras mais; todas com características próprias e marcantes: idealistas, com sede e fome de justiça e de liberdade.
Um desses movimentos derrubou um presidente; o outro, o autoritarismo de pais conservadores e “quadrados”; outro mais, certamente, aniquilou finanças de progenitores que assistiram, atônitos, aos gastos exorbitantes dos filhos consumistas e compradores compulsivos.
É hora do jantar. Aguardo faminto o prato do dia. É justo e salutar sentar-se à mesa com a família empós uma cansativa jornada de trabalho de um dia de sexta-feira, por exemplo.
– O jantar já está pronto? Pergunto apenas para cumprir as formalidades do lar, doce lar. Aprendi na escola que utilizamos esse recurso da língua quando queremos iniciar uma comunicação, manter contato com um possível receptor. É o que os letrados chamam de linguagem fática!... Adoro essas bobagens conceituais! E onde ficam os matutos que insistem em ‘subir pra riba’ e a ‘entrar pra dentro’!?
– Vou fazer agora, espere um pouco. Em três minutinhos estará na mesa! Responde minha doce mulher, sorridente e aparentemente tranqüila.
– Em três minutos!? Interrompo assustado.
– É. Em três minutinhos.
A praticidade aguça meu ilusório, fazendo-me marcar no relógio o tempo do jantar instantâneo.
– Já está pronto. Venha comer.
Quatro minutos e meio – concluo ao observar o relógio. Um acréscimo pequeno, mas o equivalente a um aumento de cinqüenta por cento do tempo previsto.
– Venha logo – grita a mulher, interrompendo minhas divagações.
– O que é isso!?
– É o jantar.
– Jantar!?
– É. Experimente. É de carne... Tem de galinha, galinha caipira, tomate... É um lançamento do mercado alimentício. Não é prático? Fiz ontem quando você estava de serviço e adorei!
– Ah, tá. Sei – respondi sorrindo meio sem graça, disfarçando o descontentamento. Afinal, era a primeira vez.
Certamente, estava buscando uma forma de tentar agradar o maridão que passara a noite anterior fora por motivo de trabalho. Talvez fosse esse o motivo do jantar diferente. Relevei.
Na noite seguinte, perguntei se o jantar já estava pronto.
– Vou fazer agora, espere um pouco. Em três minutinhos, estará pronto.
“Em três minutinhos...” Eu já conheço essa história! Tem de carne, de galinha... De novo não! Será possível!?
– Já está pronto. Venha comer.
Quatro minutos e meio. Ou eu estou enganado ou meu relógio está defeituoso. Já sei: o fogão está com defeito, as bocas não estão queimando bem. Será que estou diante de mais uma propaganda enganosa!?
– Venha logo – grita a mulher, interrompendo minhas divagações.
– Tô indo! Calma! É o mesmo jantar de ontem? Aquele que fica pronto em três minutinhos?
– Isso! Está pronto.
– Ficou pronto em quatro minutos e meio, tá!
– Hoje eu fiz de galinha. Experimente.
– Ah. E amanhã, vai ser de tomate?
– Se você quiser.
– Mãe? Interrompe nossa filhinha.
– O que é menina?
– Bote um miojo pra mim.
– ...
Na minha viagem ao túnel do tempo, olvidei, ingenuamente, a mim mesmo e agora me deparo fatalmente com a mais nova mania nacional que taxarei de “geração miojo”.
Ingredientes: farinha de trigo, gordura vegetal hidrogenada, sal refinado e beta-caroteno. Conseqüências marcantes: catalisa processos de separação conjugal, destruindo lares e famílias.
Está na hora do jantar.
– Amém.
Nijair Araújo Pinto
Fortaleza, 05 de maio de 1999.
Do meu livro 'Crônicas e mais um conto'
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