O Depoimento da Vítima
O Depoimento da Vítima
Quando te vimos, estavas assombrosa na junção das paredes, ao que me parece, lugar de tua preferência. Por pouco não te relamos. Colada na quina parecias um adesivo em relevo, inquestionável, mais que holográfica, horripilante aos nossos olhos. Pasmos, desnutridos da ação momentânea, hesitantes em dar-te o destino que geralmente damos às tuas semelhantes, a morte, resolvemos de maneira inexplicável, enviar-te à prisão.
Através de mecânico fenômeno, agimos meio imbuídos, meio soltos, funcionando nossos membros então movidos de pau, a mover-te. Cautelosos, à distancia, jogamos em cima de ti uma concha plástica, mero utensílio de cozinha, com o intento de tolher teus movimentos. Uma vez precariamente enjaulada, o dia caminhou.
De breve em breve, sorrateiros, íamos espreitar tua silhueta parda escura, teu jeito imóvel e encurralado de caranguejeira. Nada muito mudou com tua presença cativa à nossa volta. A bem dizer, nossos afazeres incorreram na mesmice de sempre.
Já à tarde, arborizada, ensolarada, caiada de passarinhos, optei pela leitura. Curiosamente um livro sobre a vida nesta terra, e que, natural, tratando desde os vermes até os elefantes, discorria também sobre ti.
No entanto aqui, do tamanho de uma laranja, me incomodavas. Detesto qualquer coisa relativa a cativeiros e, não obstante, era eu um cúmplice de vossa desagradável situação. Ou da nossa?
Foi que, enquanto lia, resolveu-se dar cabo de tua existência. Parva e omissa, minha mais miserável atitude sobre si. E nessa passividade ordinária assisti seres rapidamente atirada à terra, por medida de precaução. E olhe que um pouco de sorte não te faria mal. Por pouco não te perderam. Sendo bicho da terra, mesclou-se. Mas os olhos assassinos são verdadeiramente sagazes e objetivos. Uma vez localizada, a execução da sentença consumou-se à vassouradas.
Findo o ato, apenas lamentei atento e insensível, o teu descuido em procurar abrigo nesta casa. Porem, o inexplicável somava-se. Teus algozes te recolheram a um receptáculo de fino vidro transparente, um velho pote, a servir de pretexto exibicionista, assim como fazem certos homens do safári, que expõem as cabeças das presas na parede. Mas a vaidade, a vangloria, a presunção e, no teu caso, acrescento, a tolice, juntaram-se ao irrefletido.
Não me perdoe. Não gosto de ti. Caso estivéssemos sozinhos, você e eu, provavelmente me transmitirias tremenda aflição, pois nem o necessário arrojo a te dizimar eu possuo. Por não gostar de matar e como já disse, de você. Entretanto, acredite, a fraqueza às vezes causa estranhas reações no ser humano.
Na noite, o espanto deste acaso.
Escancaradas se mostraram as fisionomias, pois teus membros delgados se distendiam. Nem morte, nem ressureição. Um simples desmaio. Aos bocadinhos, lívida, talvez exausta desse malogrado dia recompusera-se tateando o novo habitat. Durante essa estada vitrificada, só mesmo balançando o pote para que fossem claros os teus gestos. No mais, permanecias estática, à espera. E ali, trancafiada, translúcida, ou eu muito imaginava, ou o teu campo sensível se obstinava a me incomodar.
Passados espaços suficientes, e, pouco estimulado, principiei a argumentar a tua libertação. Contudo se o fiz, saiba, foi sem fenômeno de causa e efeito, sem convicção. A força se mostrara pouco explicita face à necessidade desta ocorrência. Uma perseverança mole e enfadonha impelia-me no neutro, a minimizar miseravelmente tua presença, milhar entre milhares, indigna do meu respeito. Que concepção assombrosa.
Ainda assim, falei, para livrar a consciência, para me fazer ouvir aos presentes, a mim mesmo, ao meu anjo da guarda. Não fora a minha voz, fora uma gravação, não foi falar por falar mas quase.
Soltá-la jamais, responderam. Temia-se vingança. Ora, porque não soltá-la longe daqui? Calamos. É possível que tivéssemos ponderado algo, intimamente, mas algo indetectável, esgazeado, e assim, longe de palavra ou conclusão.
Veja só, tu não tiveste o perdão, nem mesmo daqueles que por ventura resistem sucumbir à pena dos homens. Ao contrario, decretou-se a qualidade do extermínio. E quando se dispuseram a tal, evidenciou-se a escassez do meio. Do produto. Sem querer confundi-la, você sabe, moramos longe da cidade, no campo, sob o pretexto de amar a natureza. Mas ocorre uma defasagem nesse sentimento, falta-lhe abrangência. A natureza está muito alem das pastagens, das belas arvores, das flores e do céu azul. Borbulham infinidades nesse contexto. E tu fazias parte. Logicamente, não eras a única. O que nos aterrorizava era o teu tamanho, sem contar, é claro, com o mito estético deste teu aspecto.
Mais um dia e a cidade fora divisada e dentre variados objetos, o mortífero instrumento. Tu continuavas lá, imóvel, ou em raras apresentações movendo as patas, algumas, ora salientando o ferrão pontiagudo, instantaneamente inútil, criaturinha ágil e habilidosa, só não conseguimos enxergar tua beleza.
De noite, desatarraxamos, delicados, receosos, os portões de tua câmara mortuária. Sobreviveste à vassouradas, à 2 dias de completo jejum, a certos suplícios de expectativa. Transpiraste, decerto, de medo desse nosso olhar vazio, que nada no fundo nos trazia – sua visão engarrafada, nem uma mínima recompensa por estares sôfrega, paralisada, no entanto digna e viva, protagonista infeliz de tão malfadonho ato.
Que infortúnio o teu em cair em mãos tão desastradas. Se fossemos daqueles que pouco se dão pela tua presença, ou ainda outros, que corajosamente te fazem caminhar pelos braços, devolvendo-te em seguida ao recheio da paisagem, o qual preenches tão habilidosamente...
Mas, depois de um certo estágio a grosseria é irrefreável.
O líquido alvo, ardente, que insinua coágulos, escorreu pelo pote o suficiente para te encobrir. Assisti a 2 passos o teu sofrimento lento. Mas claro que lento. E se tivéssemos ido às raias do sadismo, embora nem de longe a questão fosse essa, teríamos cronometrado tua virulência persuadir-se pelo arrebatador corrosivo, penetrando tuas células, torturando teu centro nervoso, tudo o que em ti incorpora e finalmente existe deixou de ser, lentamente.
Com incredulidade no ato, quase indagamos, resistirá? Espasmos, contrações, distensões, o envenenamento cumpria sua tarefa em doar-lhe, sem que nem porque, um ponto definitivamente trágico. Sofrido, e ainda que para nós encharcada, duraste lá uns secos instantes.
Depois, pronto, tudo acabado. Os passeios lisos e esguios pela relva intrincada, alguns milímetros aconchegantes entre paus ou pedras, suculentos seres inferiores para teu deleite, um macho pra encher-te a barrigada de ovos, porque para mim tu eras fêmea. Digo, pelo teu tamanho. A ciência afirma que no teu reino as fêmeas são maiores. Mas veja, só especulo. Confesso que, enquanto viva, presa ao vidro, essa nossa garra pré-fabricada, exercias um ínfimo e atrativo poder, afiado decerto, misto de compaixão e repulsa, e um que vergonha, por não sermos íntimos, como sou com um coelho, numa exemplificação vulgar. Ou por não ter a confiança de vê-la na parede, como vejo um louva-deus, um sapo, uma mosca. Fascínio avesso, malfadado por assemelhar-se à minha ignorância como coisa tão extravagante, nociva, ao mesmo tempo alheia à esses gigantes que te circundam, amedrontando-os por estar apenas presente. Contudo, suscitando-nos estranhas ilusões de nos atacar durante o sono, comendo-nos os olhos ou coisas assim, te entregamos à morte.
Creia-me, agora no estapafúrdio de te dizer, ainda que para ti tanto faz. Não houve o deliberado e mucoso gesto de querer te ver sofrer. Sim, somos homens, aqueles que retiram do ar e sintetizam no sangue a destruição. E como tais, sofremos de “circunstância”. Assim, o que sucede é simples e de mau gosto: tivemos a honra de submetermo-nos à soberania da Estupidez.
Todavia o certo, o palpável, o incontestável, é que findaste num pote cheio de álcool. Tua carcaça não serve nem para a amostragem aos levianos como nós, visto que encolheste. Teu destino foi o exemplo do poder , ignorância e desrespeito, aliados à predadora fraqueza dos carrascos, que fizeram de ti um resto embebido, uma historia comum e rotineira de final sem paladar.
E eu te peço perdão.
Santa Rita do Passo a Quatro/1984