Roda dura é a mãe

Não há Bem que sempre dure: há quase três meses, desde que trocara de carro, parecia que sua sorte tinha virado. Até que no fim de tarde chuvosa, o dito popular foi por água abaixo. Por causa de uma fechadinha boba no trânsito, o mestre em direção ofensiva aplicara-se duas fechadas perigosas. Não satisfeito, emparelhou com Ela no sinal e chamou-a de roda dura. Ela não se abalou – ter experiência, nessas horas, é uma mão na roda! Armou-se do seu sorriso mais simpático e pediu sinceras desculpas. O outro não se deixou levar e perguntou onde Ela comprara a carteira de motorista.

Não foi bem assim: no sexto exame de rua, após mais uma tentativa desastrada de baliza, Ela apenas sensibilizara os examinadores. Todos já tinham desistido de ensiná-La a dirigir – auto-escolas, professores particulares e até o marido, poço de paciência. Melhor do que aquilo Ela nunca ficaria. Foi aprovada no exame. Não se arrependia do artifício usado: prova de que Ela estava certa era ainda se envolver em querelas no trânsito, vinte e tantos anos depois.

Esforçada, Ela estuda itinerários, chega aos compromissos com antecedência para garantir uma boa vaga para estacionar. Reconhece, no entanto, que dirigir é tarefa árdua: exige muita concentração, visão espacial e jogo de cintura. Dois pequenos episódios arruinaram a sua reputação no trabalho: foi vista lendo com o carro em movimento e de outra feita fazia palavras cruzadas no trânsito ( desta vez, o carro estava parado!). Fama ruim se alastra como fogo: é só Ela abrir a boca para queixar-se e sempre aparece alguém para perguntar: “ e você lia ou fazia palavras cruzadas enquanto dirigia?”

Ela atribui tudo ao preconceito sexista: leu em algum lugar que Pelé quase fundiu o motor de um carro zero viajando de primeira, sem trocar a marcha, de São Paulo a Santos. Ninguém o rotula de roda dura. Há pouco, Ela foi ao Espírito Santo com as filhas. A viagem foi ótima: em doze horas agradabilíssimas cumpriram os quinhentos e poucos quilômetros que separam os dois estados. Surpreendeu-se, no fim de semana seguinte, com a chegada do marido à casa de praia. Saudade, ele alegou. Na volta ao lar, percebeu que o cágado mais lento da casa, o Rubinho ( homenagem ao Barrichelo), fora rebatizado com o Seu próprio nome. Matou a charada: as meninas tinham pressionado o pai para buscar a família.

Sua habilidade ao volante gera hábitos saudáveis: todos colocam o cinto de segurança e fazem o sinal da cruz quando Ela dirige, o marido bebe com moderação em festas. Sem querer, um dia Ela entreouviu uma conversa da filha quando ele se servia da terceira dose de destilado: “Pára, pai: se você beber, mamãe dirige!”.

É chato se sentir diferente num mundo de ases do asfalto, Ela pensa. Enfrenta com bom humor as piadas, sabe que seu caso virou folclore. Há compensações: numa fechada involuntária, conheceu o motorista de táxi que durante alguns anos levou e buscou as filhas na natação, balé, inglês. Que ele tinha bons reflexos, era tolerante e paciente, Ela não tivera dúvidas desde o primeiro momento.

Roda dura, piloto de fogão, D. Maria, de tudo Ela já foi chamada. Por fora, tira de letra. Mas lá no fundo, dói e mina sua auto-estima não poder retrucar.

Ninguém entendeu quando Ela insistiu em ensinar a filha mais velha, 17 anos, a dirigir. Ela sabe o que faz: um dia, a garota vai redimi-la de todos os desaforos e injustiças não revidados. Quando alguém chamar a moça de roda dura, Elinha poderá dizer sem ofender ou parecer agressiva: " Roda dura é a ( minha) mãe!"

Não há Bem que sempre dure, é certo.

Mas também não há Mal que nunca acabe.

Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 16/03/2008
Reeditado em 16/03/2008
Código do texto: T903356
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