"Uma Santa Avozinha" = Crônica do cotidiano=
Se havia uma pessoa pela qual eu nutria muita simpatia no penúltimo bairro em que morei em São Paulo, essa pessoa era dona Amélia. Uma velhinha até mesmo bonita para quem já havia, evidentemente, passado dos oitenta anos. Seus olhos azuis expressavam bondade pura, era muito carinhosa com seus netos, muito paciente com a criançada que chutava bolas para dentro de seu quintal, e estava sempre preocupada com os cães e gatos abandonados nas imediações. Ao encontrar um bicho abandonado não tinha sossego enquanto não lhe conseguisse um novo lar.
Adorável essa velhinha, era o que se diria dela à primeira vista.
Pura propaganda enganosa aquele rosto maternal, aquele sorriso bondoso, aqueles modos suaves. Aquele jeito de avozinha personagem de Monteiro Lobato.
Por um acaso, por um simples acaso, constatei que era pura fachada, nada mais que fachada. Bondade ali era apenas uma máscara para viver e angariar simpatia.
Um dia eu e um comerciante do bairro comentávamos a barbaridade cometida contra um pobre mendigo na praça da Sé, a quem alguém ateara fogo depois de encharcá-lo de gasolina, e ela parou para ouvir a conversa sem que a convidássemos. Na primeira oportunidade ela meteu sua colher e disse que era uma forma excelente de limpar a cidade. Achei que era brincadeira e ri. Mas ela continuou falando, e com cara séria, que achara ótimo quando, décadas atrás, ficara sabendo de um governador de estado mandava que se enchessem canoas com mendigos e os soltassem em alto mar. Em pouco tempo a cidade ficara limpa, sem aquelas “imundícies humanas”. Ela não tinha certeza se o caso era verídico, mas achara a idéia excelente na ocasião.
Há ocasiões em que tenho a sutileza de um elefante. Creio que são raras, mas nunca me arrependi de uma das vezes em que parti para a grosseria, mesmo enunciada em voz baixa:
- Quer dizer, dona Amélia, que essa sua carinha de velhinha santa é pura propaganda enganosa? Que na verdade a senhora, por dentro, é um monstro com cara de avozinha boazinha?
Ela ficou brava:
- Não sei porque o senhor está dizendo isso. Desde quando mendigo é gente?
- Mendigo é gente, sim senhora. Quem não é gente é a senhora, que parece um ser humano por fora, mas por dentro é podre. Maldade apodrece, minha senhora. O animal que botou fogo no mendigo deve ser seu parente, no mínimo.
- Se fosse, o senhor pode ter certeza de que eu teria muito orgulho dele. Pode ter certeza, seu Fernando.
Meu amigo, o comerciante, mantivera-se calado até aquele momento, mas resolveu manifestar-se:
- A senhora é católica, dona Amélia?
- Com a graça de Deus, seu Aurélio. Porque pergunta?
- Então hoje à noite a senhora reze e agradeça a Deus por ser uma velhinha caquética de mais de oitenta anos.
- Caquética é a senhora sua...
- Porque se a senhora não fosse uma velhinha caquética já teria levado um tapa na nuca que mandaria sua dentadura lá na outra esquina. Agora vaza daqui que minha paciência já se esgotou.
Ao ver a cara de bravo do meu amigo, dona Amélia resolveu voltar depressa para casa. Velhinha filha da....